Aila* não saiu da casa dos patrões por quase um ano. Eles queriam se proteger do coronavírus e o preço foi a liberdade dela, empregada doméstica que ficou privada da própria vida desde março do ano passado até fevereiro deste ano. Ela reclamava, era livre. “Mas é para o bem de todos”, respondia a patroa. Aila* precisava do salário. Foi ficando naquele cárcere, por necessidade.
As portas da rua foram fechadas para ela assim que a pandemia começou. Cuidava de duas crianças, limpava e cozinhava, mas não tinha folga. Os patrões exigiram que ela permanecesse no apartamento, com eles e os dois filhos, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, “enquanto a pandemia durasse”. Se não, seria demitida do emprego que a pagava R$ 1,5 mil mensais. Aila* dependia do salário e passou a não voltar para casa, em Salvador. Dizer sim nem sempre é escolha. Pelo extra no trabalho, não ganhou remuneração a mais.
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No Sindicato de Empregadas Domésticas da Bahia, no bairro da Federação, há um caderno em que estão anotados os pedidos de socorro de empregadas confinadas no trabalho. Já são 28 deles, segundo levantamento do sindicato para o CORREIO.
A associação fala "em muitos casos" não descobertos, ofuscados pelo medo das empregadas de denunciar. Há etiquetas de “urgente” fixadas em algumas queixas, quando o confinamento já dura seis meses. Essas mulheres são, em sua maioria, negras – 92%, mostra o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) –, chefes de família e moradoras de periferias.
Os patrões chamam de “medo de contaminação”, conta Valdirene Boaventura, responsável pelo jurídico do sindicato, o que os leva a obrigar as funcionárias a ficarem no trabalho. As empregadas passaram a ser vistas como “ameaças”, pela exposição em transportes públicos e nos locais onde moram. A obrigação legal de oferecer proteção ao empregado no ambiente de trabalho é dos patrões.
Estamos de mãos atadas, porque elas precisam de trabalho. Não dá para a gente simplesmente dizer para saíremValdirene Boaventura, responsável pelo jurídico do Sindicato de Empregadas Domésticas da Bahia
O salário médio de uma empregada doméstica com carteira assinada, no Brasil, é de R$ 1,2 mil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Organizações que representam as domésticas apontam que 75% delas vivem na informalidade. Ou seja, ganhando menos que o mínimo e mais vulneráveis.
“A pandemia remete a situações que remetem à escravidão em uma modalidade diferente”, afirma Milca Martins, diretora da Federação Nacional das Empregadas Domésticas. “Nem sempre elas percebem isso”, lamenta.
Aila* até percebia, tanto que questionava os patrões, pedia para voltar para casa. O que fazer dessa percepção, se precisava do salário, ela não sabia. Só depois de um ano, ela largou o trabalho. Agora desempregada, quer processar os ex-chefes.
Análogo à escravidão
O ato de privar as empregadas domésticas de suas próprias vidas é condenado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). A procuradora Manuella Gedeon afirma que "não existe qualquer legalidade nisso". E que o cerceamento da liberdade já é um dos indicativos para ligar um alerta sobre trabalho análogo a escravidão. O medo de contaminação não pode ser justificativa. "É um conjunto de fatores. A falta de liberdade é um deles", explica Gedeon.
São quatro os critérios para determinar um trabalho desse tipo – além da restrição do ir e vir, trabalho forçado, jornada exaustiva e condições degradantes. Eles podem aparecer juntos ou isoladamente. Quando interpelados por uma fiscalização que flagra trabalho análogo à escravidão em ambiente doméstico, os patrões costumam repetir três frases: 1) "Ela era da família", 2) "Eu estava ajudando" e 3) "Não sabia que era uma situação de exploração".
Em relação ao trabalho análogo à escravidão, depende de outros fatores, como a vulnerabilidade da vítima. Mas a pandemia também pode agravarLiane Durão, a coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Análogo à Escravidão, da Superintendência Regional do Trabalho na Bahia
Os patrões que privarem funcionárias da liberdade podem ser penalizados e a empregada libertada, com direito a todos os direitos trabalhistas e possíveis indenizações. Em 2021, o MPT iniciou quatro investigações sobre empregadas mantidas em trabalho análogo à escravidão. Ano passado, no país, 14 pessoas foram resgatadas de trabalho escravo doméstico. Uma delas, na Bahia.
Medo do desemprego pode aumentar vulnerabilidade
Em novembro do ano passado, Marlene* completou seis meses no trabalho. Durante o tempo confinada no apartamento onde trabalhava há cinco anos, na Pituba, não voltava para casa. Era impedida sob o pretexto de que poderia infectar a patroa idosa. No limite, com saudade dos filhos e neto, ela pediu demissão.
“As trabalhadoras, quando não aguentam mais, são pressionadas a pedir demissão e não recebem seus direitos”, explica Milca Martins.
Os empregos domésticos, que podem incluir funções como limpar, cozinhar, lavar, cuidar de crianças, idosos, zelar pelo jardim e proteger uma casa, foram o segundo mais afetado pela pandemia, atrás do comércio, mostra o IBGE. Em 2020, 106 mil pessoas que trabalhavam no setor perderam o trabalho. Hoje, elas são 307 mil. É mais um cenário que favorece abusos.
“Chegou ao ponto que a pessoa aceita [acordo abusivo] pela necessidade. É uma situação ilegal que mostra o egoísmo e como a cultura escravagista permanece”, opina Mário Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal.
A organização até elaborou uma cartilha explicando o que o empregador e o empregado podem fazer durante a pandemia. O MPT também reúne opções. O trabalho doméstico é legal, mas precisa seguir a lei. Se assim for, não há problema.
Uma nota técnica emitida pelo MPT no início da pandemia recomendava a dispensa das trabalhadoras domésticas com remuneração ou flexibilidade de jornada. A minoria o fez, dizem Sindicato das Empregadas Domésticas e Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. Não são apenas os patrões que têm medo do coronavírus. E, ao temor das empregadas domésticas, soma-se a vulnerabilidade social delas.
A primeira vítima fatal da covid-19, no Rio de Janeiro, em março do ano passado, foi uma empregada doméstica de 63 anos infectada pela patroa que tinha retornado da Itália. A patroa estava contaminada, mas não liberou a funcionária.
Em Feira de Santana, a primeira infectada na Bahia, depois de também voltar da Itália, contaminou a empregada, que infectou os pais idosos. Não há levantamento de mortes ou contaminação por covid-19 entre empregadas.
O que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) garante, a partir de estudos realizados desde o início da pandemia, é que elas são frequentemente vítimas de violação de direitos humanos. Compreender as raízes disso, no entanto, requer olhar para trás.
Pandemia coloca 'Brasis' de empregadas e patrões frente a frente
Depois da abolição da escravidão, em 1888, o trabalho doméstico feito por mulheres escravizadas continuou tecido pelas mesmas mãos negras. Como a maioria delas não tinha para onde ir, ficaram na casa de famílias brancas que não as remuneravam. O trabalho doméstico era tido como retribuição de um "favor". Os brancos ofereciam um teto. Por ele, as mulheres pretas pagavam com muito trabalho.
“É o caso da menina levada para casa da família branca, fazendo as tarefas domésticas”, explica Joaze Bernardino-Costa, pós-doutor em Estudos Étnicos pela Universidade da Califórnia que estuda trabalho doméstico no Brasil.
Somente em 1972, as domésticas, depois de uma longa luta, conquistam o direito de ter carteira assinada. Antes, não eram sequer consideradas trabalhadoras, porque não geravam lucro. O reconhecimento das empregadas domésticas como trabalhadoras formais é propiciado pela luta política delas, mas também por algo desconexo a ela.
A verticalização das cidades acentuada no final dos anos 80 passou a extinguir o “quarto da empregada”, aquele cômodo pequeno, quase anexo à cozinha. “A figura da empregada doméstica começa a se dissociar um pouco das famílias dos patrões”, afirma Joaze. Mas, não deixam de existir relações forjadas na intimidade e informalidade entre famílias de empregadores com as empregadas. Daí surge o "é como se fosse da família".
Diferentemente de outros países, como os Estados Unidos, o Brasil manteve a tradição de um trabalho doméstico precarizado pela cultura – "nossa classe média é muito dependente", frisa Joaze – e a desigualdade social. É uma relação historicamente complexa, evidencia ele, que ganha novas camadas de complexidade com a pandemia. Patrões e empregadas ficaram, cada qual em um extremo, vulneráveis, com medo de se contaminar.
Perguntas nunca antes feitas apareceram. "Onde a empregada mora? Como ela chega até a minha casa? Quais são suas condições para ter acesso ao sistema de saúde?", elenca Joaze. "Os empregadores começaram a pensar coisas que nunca pensaram", acrescenta. A pandemia, resume o sociólogo, pôs "dois Brasis, que sempre viveram tão perto, mas tão longe, de frente".
São dois elos que podem dialogar. A advogada trabalhista Raquel Santana, que analisou no mestrado pela Universidade de Brasília (UnB) trabalhos domésticos, afirma que empregadas domésticas, o lado mais fraco, e empregadores, o mais forte, podem chegar a consensos para diminuir os riscos de infecção pela covid-19. Se os direitos forem mantidos, nada impede um acordo para manter as empregadas 15 dias no trabalho e 15 de folga, como para cuidadoras que precisam de revezamento, mas trabalham com pessoas do grupo de risco.
As fiscalizações para descobrir se os acordos são legais, no entanto, enfrentam desafios, afirma Raquel. A reportagem mapeou, via Lei de Acesso à Informação, apenas oito processos ajuizados no Tribunal Regional do Trabalho (TRT-BA) por domésticas, em 2021, na Bahia, que tenham relação com a pandemia. Ao todo, foram 253 ações trabalhistas.
“Existe uma complexidade que impacta um número que poderia ser maior”, critica.
No caso das domésticas, a advogada completa, ainda há uma mentalidade que as enxerga como objetos. Vistas como coisas, empregadas confinadas na casa dos patrões até acreditam que não possuem direitos. Deixam suas vidas suspensas no tempo e revelam Brasis que ainda têm contas – e muitas – a acertar.
*Nomes alterados a pedido das entrevistadas.