A dor virou combustível para a luta. A perda, um símbolo de resistência. “Minha filha não foi a primeira nem será a última. Mas ela morreu lutando. E a luta dela não pode parar.” É a consciência do extenso caminho que ainda falta ser percorrido que faz de Suely Araújo, 58 anos, uma guerreira. Igual à filha. Há exatamente um ano, a fisioterapeuta Tássia Mirella Sena de Araújo, 28, era barbaramente assassinada a golpes de faca. Corpo mutilado, garganta cortada, sangue por todo o apartamento, um flat em Boa Viagem, na Zona Sul do Recife. Morta em casa, onde imaginava estar protegida. Em poucas horas, a polícia chegou ao único suspeito do crime: o vizinho de Mirella. O comerciante Edvan Luiz da Silva, 32, tinha mordidas no braço, marcas de luta. Mirella lutou tanto que sua morte é um marco. Virou o Dia Estadual de Combate ao Feminicídio. Lembrado hoje, mas necessário todos os dias.
Não procure vestígios de ódio ou vingança nas palavras de Suely nem do marido, Wilson Pacheco, 60. Com uma força e uma paz impressionantes, eles fizeram da breve e intensa vida da filha uma inspiração. Dito pela família e amigos, Mirella era alegria, perseverança, esperança, luta. “Reparem nas fotos. Ela sempre estava sorrindo”, recordam. E a história da filha é agora o grande conforto dos pais. “Mirella já era um símbolo de luta porque era uma grande guerreira. Deixava o legado dela por onde passava. Não aceitava injustiça ou violência. E terminou sendo vítima daquilo que mais odiava: a violência contra a mulher”, diz o pai. Não à toa, sua última postagem, na noite anterior ao crime, foi a frase “#mexeu com uma mexeu com todas”, numa reação à denúncia de assédio sexual envolvendo o ator global José Mayer.
Mirella também foi vítima de violência sexual. Os cortes espalhados no corpo da jovem provam que ela resistiu até o fim. É quando lembra o espírito guerreiro da filha que a mãe desaba no choro. “A luta foi muito grande naquele apartamento. Mas ele não conseguiu o que queria”, diz Suely, aos prantos. A mãe faz referência ao resultado do exame sexológico que confirmou não ter havido penetração. E lembra que, um mês antes de ser assassinada, Mirella contou a uma amiga o que terminaria virando premonição. “Ela disse: ‘eu posso ser estuprada, mas só se fosse morta, porque vou lutar até morrer’. Essa era a minha filha.”
A crueldade com que a jovem foi assassinada por alguém que ela sequer conhecia chocou pela face extrema da violência a que a mulher é subjugada pela simples condição de ser mulher. “Quem aceita ver uma filha assassinada de uma forma tão brutal? Só porque é bonita? Só porque é mulher?”, afirma o pai, Wilson.
De tão chocante, o luto virou luta. A decisão de transformar a data do homicídio de Mirella no Dia Estadual de Combate ao Feminicídio é uma forma de não esquecer. Porque o esquecimento anda de mãos dadas com a impunidade. E é por saber que a lembrança não pode ser só de uma, mas de muitas, que Suely se enche de coragem.
“Toda vez que surge um novo caso a gente tem que estar ali, nas ruas, denunciando. Ninguém pode parar essa luta. Ela é constante. Parece que depois de Mirella apareceram mais. A gente vai continuar lutando. Não só por ela. Por todas.” Só nos dois primeiros meses deste ano, 54 mulheres foram assassinadas em Pernambuco. Dessas, nove foram vítimas de feminicídio.
A certeza de que essa é uma dor coletiva fez Suely, no momento em que soube do assassinato da filha, ser forte e não desabar. “Eu perguntei: ‘Por que, meu Deus?’ E foi como se eu ouvisse: Porque você é igual a todo mundo. E Mirella é igual a todas. Ela não é diferente daquelas que passaram por isso. Nem você é diferente de outras mães.” Ao se colocar no lugar de todas, Suely entendeu que não podia se revoltar nem se entregar. “Lute. Mas lute sem ódio e sem rancor. Porque Deus é amor, mas também é justiça.”
Hoje os pais de Mirella estarão na audiência pública que será realizada, às 14h, na Assembleia Legislativa para discutir o combate ao feminicídio em Pernambuco. Mas, por onde vão, eles não levam o sentimento de vingança. “O que nós queremos é justiça”, afirma o casal.
Quando fala de Edvan, Suely confessa que já desejou ficar frente a frente com o comerciante. Queria lhe perguntar o que parece impossível de entender: “Por que ele fez uma maldade dessas com uma pessoa que ele nem conhecia?” Edvan está preso desde o dia do crime. Foi denunciado por estupro e homicídio quadruplamente qualificado. A data do julgamento continua indefinida porque a defesa do comerciante entrou com recurso junto ao Tribunal de Justiça de Pernambuco para tentar barrar que o acusado vá a júri popular.
“A ferida você tem que trabalhar todos os dias, colocar a pomadinha do perdão”, ensina Suely, tentando explicar, em parte, de onde vem tanta força. Mesmo quando chora, e ela chora todos os dias, a mãe diz que não é um choro de revolta. É um choro de amor. De saudade. Para nunca deixar Mirella triste.