Já se passaram nove anos desde a primeira gravidez de Júlia. Mas somente agora, com o recolhimento de seus cinco filhos para um abrigo, o histórico de abusos e abandono que ela mesma sofreu saiu da invisibilidade e não deixa dúvida: mesmo tendo mantido vida de casada com o pai das crianças, ele a estuprou. Jorge (ambos são nomes fictícios) tinha 23 anos quando manteve relações sexuais com a trapezista de apenas 10 anos. “Ela relatou o fato e ele confirmou, então vou indiciá-lo não só por abandono de incapaz, mas também por estupro de vulnerável, no mesmo inquérito. O crime só prescreve com vinte anos”, declara a delegada Vilaneida Aguiar, responsável pelas investigações.
Um dos conselheiros tutelares que acompanham o caso, Jason Clemente, diz que Júlia receberá todo o apoio da Rede de Atendimento à Infância de Jaboatão, pois também teve sua infância violada. “Mesmo com as condições de abandono em que seus filhos foram encontrados, o que a gente percebe é que essa mãe também é vítima do pai das crianças e ela vai ser acompanhada por psicólogos”, diz. A superintende da Secretaria de Ação Social e Direitos Humanos do município, Juliana Santos, informa que, se Júlia quiser, também terá ajuda nas áreas de saúde, educação e assistência social.
“As crianças abandonadas estão abrigadas. Mas o ideal é que voltem para a família e, junto com a Vara da Infância, vamos procurar se há algum parente (avós, tios...) que possa e queira ficar com elas. Mesmo a mãe tendo interesse em recuperar a guarda, não é um processo simples, ela precisa passar por um trabalho de superação, precisa progredir”, esclarece a gestora. “Veremos se ela quer estudar, se precisa retirar documentos, fazer a inscrição no Bolsa Família, o que pudermos. Ela já deveria ter tido esse tipo de assistência antes. Uma gravidez aos 10 anos é de risco e é estupro, deveria ter sido aberto um inquérito”.
A oficial de desenvolvimento e participação de adolescente do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Luiza Leitão, observa que Júlia sofreu violações sistemáticas dos seus direitos e, aos 19 anos, “vive num cárcere, que não é físico”, dependente dos pais de seus filhos. “A gravidez foi resultado de uma série de fatores, como o abandono, a pobreza, a falta de estudo e o próprio abuso sexual. É um ciclo que não se rompe. E faltam políticas públicas para combater isso”, analisa. “É comum a gravidez nessa faixa etária ser fruto de estupro. Em 2016, 24.135 meninas de 10 a 14 anos tiveram filhos, no Brasil. Em Pernambuco, foram 1.298. É um dado preocupante”.