A cidade é o que se faz dela. Do afeto construído nas lembranças de infância. Dos cheiros da rua. Dos gostos de casa. Se é do sonho dos homens que uma cidade se inventa, é na relação com as pessoas que, de fato, ela passa a existir. O Recife são muitos. Olinda, tantas outras. Hoje, aniversário das cidades irmãs, o passeio não se guia pelas paisagens, mas pelas pessoas que transformam esses lugares em memória e imaginação. “A memória é um jogo entre lembrança e esquecimento”, ensina o historiador Antônio Paulo Rezende. Nessas cidades imaginárias, moradores contam sobre esse amor forjado em cantos e recantos que, para eles, fazem de Recife e Olinda o seu lugar.
Aos olhos de Jodecilda Airola da Silva, o fim da tarde é a hora mais bonita de Olinda. Lá pelas 17h, quando o sol se põe no Alto da Sé, dá vontade de chorar. Mas ela não é do choro. É do riso. “É o trem passando e eu sorrindo.” Ela, falando assim, pelo nome, ninguém conhece. Mas é só apresentar direito. Chamar pelo apelido que virou uma instituição, patrimônio vivo da cidade-patrimônio. “Boa tarde, dona Dá!”, cumprimenta o rapaz, passando na rua. A dona Dá dos boizinhos, da Rua da Boa Hora, diz que a vida em Olinda segue um ritmo que alimenta a alma. “O tempo aqui passa, a gente fica e nem sente.”
A forte ligação entre o profano e o religioso, tradução perfeita da cidade, faz de Olinda o lugar certo para ela viver. “Muitas agremiações do Carnaval são feitas pelo povo das irmandades que carrega o andor nas procissões. Isso é lindo de ver”, diz, citando, como exemplo, o tradicional Ceroulas. Com o Carnaval “correndo nas veias”, dona Dá carrega também o sincretismo que define a paisagem de Olinda, com suas igrejas seculares e terreiros de candomblé. “Sou católica, apostólica, romana, macumbeira”, sintetiza a devota de Santo Antônio e frequentadora do ritual da lavagem das escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim (realizada, nos últimos anos, na Igreja da Sé).
Aos 78 anos (quase 79), marca-passo recém-implantado no peito, ela não foge das ladeiras. Pelo contrário. Diz que o melhor de Olinda é bater perna pelas ruas, com seus muros coloridos de bouganvilles. “A gente sai, encontra um, abraça outro, senta no boteco, toma uma cerveja, joga conversa fora. Tem como não voltar feliz para casa?”. E o canto mais bonito da cidade? “É difícil. Mas o pé da Ladeira da Misericórdia, com a Academia Santa Gertrudes, lá no fundo, é lindeza para a vida toda”, diz, abrindo uma sonora gargalhada.
Olindense que é olindense sobe a Ladeira da Misericórdia na ginga, quebrando o corpo, jogando para um lado e para o outro. Tem manha. “Se você ficar duro ou mesmo inclinado, vai cansar. Tem que ir na malemolência, para quebrar a inércia.” A dica é de um olindense da gema. Desses que passou a infância e a adolescência tomando banho de bica (cano mesmo) e levando carreira e tiro de sal do vigia do Sítio dos Manguinhos, no Alto da Sé. Ouvir o empresário e servidor público Ricardo Goes, 58 anos, falar de Olinda é como sentir o perfume das frutas dos quintais do Sítio Histórico, com suas mangas e cajás. Ser de Cidade Patrimônio da Humanidade, ele garante, é diferente. É um estado de espírito.
Ricardo já morou em tudo o que é canto da cidade: Rio Doce, Bairro Novo e, o seu xodó, a Cidade Alta. “Aqui em cima não se compara com nenhum outro lugar. Pela proximidade das pessoas. O costume de colocar a cadeira do lado de fora para conversar. É um convite à caminhada. Nesse sobe e desce, você vai falando com os vizinhos, fazendo amigos. Vira uma grande família”, diz. E, por falar em família, a de Ricardo fundou a Sorveteria Bacana, há mais de quatro décadas fincada em frente à Praça 12 de Março, no Bairro Novo. “Programa de juventude era, aos domingos, ir para a missa na Igreja Nossa Senhora de Fátima, passar na sorveteria, e depois ir perambular pela Sé”, relembra.
No sentimento do empresário, a época em que comprava na Bodega de Veio, com caderneta para pagar no fim do mês, é um tempo que, de certa forma, permanece presente. “Outras mercearias vieram, a bodega virou boteco famoso, mas essa lógica continua. Na Cidade Alta, para comprar um leite, um pão, tem que ir até o Amparo, o Varadouro, o Carmo. Nesse sentido, é a mesma Olinda da minha juventude.” Apesar das permanências, ele sente a cidade mudando. “Acho que estamos deixando de ser apenas aquela Olinda dormitório. Até shopping vamos ter agora”, ressalta, referindo-se ao empreendimento que está sendo erguido no Bairro Novo.
Nos anos em que morou em São Paulo, ela era conhecida como “Carol de Olinda”. Nos tempos de juventude, “Carol da Sé”. Carol Medeiros, chef de cozinha, 39 anos, não leva Olinda no nome, claro, mas carrega a cidade dentro dela e por onde vai. Quando morou dois anos em Paris, colocava Caetano Veloso na vitrola para matar a saudade das ladeiras históricas. “Olinda é aconchego. E a música de Caetano despertava isso, o sentimento de estar em casa.”
Carol cresceu brincando nos quintais, correndo pela rua. A mesma infância que Tomás e Nina, seus filhos, de 7 e 3 anos, experimentam hoje. Uma sensação de liberdade, que, em outros locais, só restou na lembrança. “Para mim, Olinda é ser livre. É optar por estacionar o carro na sexta-feira e só pegar na segunda.” Curiosamente, diz, uma imagem que sintetiza a Cidade Alta não é o casario secular, mas suas calçadas. Por ser lugar de ficar, “cadeiras do lado de fora”, e por ser caminho. Passagem que leva para uma vista única do mar ou para o barzinho da esquina, onde inevitavelmente os amigos vão estar.
A Olinda de Carol tem gosto de tapioca e cheiro de jasmim. Talvez a de Tomás e Nina também tenham. “Ele quer comer tapioca todo dia”, conta a mãe. Quando a filha mais nova nasceu, uma amiga, moradora do Recife, quis colocar o mesmo nome na filha. Tem problema, não, a amiga ponderou: “A sua vai ser Nina de Olinda.”