O Programa de Enfrentamento das Doenças Negligenciadas da Secretaria Estadual de Saúde – considerado uma das experiências bem-sucedidas do SUS no País – está desvendando realidade que não condiz com os tempos atuais. Ao identificar áreas com maior transmissão de esquistossomose, doença na qual Pernambuco é campeão nacional em mortes, descobriu comunidades urbanas e rurais, principalmente da Zona da Mata, que vivem em condição precária em matéria de saneamento. O JC visitou sete dos dez municípios em pior situação e encontrou pessoas que nunca usaram vaso sanitário, além de só contarem com o rio ou cacimbas para banho, lavagem de prato e roupa. Há histórias de adoecimento recente e repetido. De hoje a terça, Veronica Almeida (texto) e Bobby Fabisak (fotos) descrevem o injustificável desrespeito a direitos básicos.
A jovem Joselma Maria da Silva nasceu nos anos 90, no auge da transição epidemiológica, em que as doenças crônicas – ditas do desenvolvimento – passavam a prevalecer sobre as parasitárias. Nessa mesma década, de redemocratização, a moeda brasileira se fortalecia e a economia ganhava inovações com o crescimento tecnológico. Aos 23 anos agora, diante de uma economia mais desenvolvida em Pernambuco e no resto do Nordeste, ela ainda vive como na infância, usando água de cacimba para beber. Lava as louças e as roupas num riachinho perto de casa. “Fazemos tudo no rio”, diz. E do rio ela não só pega água. Foi lá, no contato com a água contaminada por esgoto doméstico, que Joselma e dois dos três filhos adquiriram o verme da esquistossomose.
Já tomou medicamento três vezes para curar repetidas infestações pelo parasita que aleija e mata por cirrose, hipertensão pulmonar ou hemorragia digestiva. A localidade onde Joselma vive, Cobras, em São Benedito do Sul, a 169 quilômetros do Recife, é um lugarejo escondido entre canaviais, onde segundo o programa Sanar da Secretaria Estadual de Saúde, 95% dos 112 moradores vivem sem água encanada. Os 5% restantes até dispõem de canos e torneiras em casa, mas o abastecimento é de fonte duvidosa, de poços artesanais e cacimbas sem tratamento. Não por acaso, a comunidade vive uma “hiperendemia de esquistossomose”. Nada menos que 70% das pessoas estão infestados pelo Schistosoma mansoni. É o maior índice em todo o Estado.
Nas 119 localidades estudadas pelo Sanar em 30 municípios, menos de 1% das residências tinha dejetos coletados pela rede pública. E quase metade da população exposta à esquistossomose nessas áreas, cerca de 55 mil pessoas, não dispõe de vaso sanitário em casa. Apenas 2.700 moradores, 2% de um universo de 135,6 mil, têm banheiro ligado à fossa séptica.
As duas espécies de caramujo transmissor da esquistossomose em Pernambuco – Biomphalaria glabrata e B. straminea – sempre viveram em áreas de água doce. Faz parte da natureza delas abrigar riacho, rios, açudes, charcos.
Por isso, o problema mesmo são as fezes humanas infectadas que chegam até esses locais por falta de banheiro, fossas sépticas e rede coletora e de tratamento de esgoto. Quem pega o verme acaba propagando o parasita para a família ou os vizinhos. O doente elimina os ovos dos vermes, que se transformam em larvas (cercárias) e infectam os caramujos. Na presença da luz, elas deixam os moluscos e ficam novamente livres na água ou alagados, podendo penetrar na pele dos humanos.
Descubra mais informações sobre o estudo do Sanar lendo a edição impressa do JC deste domingo.