Até a primeira semana de junho deste ano, 130.219 pessoas foram atendidas nos postos de saúde e hospitais do Estado com sintomas de doença diarreica aguda (DDA). Em 2012, no mesmo período, esse número era de 87.596. Apesar de os órgãos responsáveis afirmarem categoricamente que a água para consumo humano está sendo bem tratada, Pernambuco apresentou um assustador aumento de 48,6% de doentes por ingerirem o líquido repleto de coliformes, além de seis mortes (nos municípios de Salgueiro, Afrânio, Santa Terezinha, Arcoverde e Iati). Esse número pode ser maior, conforme mostrou nesse domingo a reportagem do JC: somente em Águas Belas, dois bebês morreram, este mês, após chegarem ao hospital com forte disenteria.
A seca fez com que a distribuição e a responsabilidade pela água se tornasse ainda mais complexa: atualmente, circulam no Estado, principalmente nas áreas atingidas pela estiagem, carros-pipa operados pelo Exército (governo federal), Estado (ação coordenada pela Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária e Instituto Agronômico de Pernambuco) e pelos municípios (através dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento). A descentralização da distribuição foi assinada em maio do ano passado pelo governador Eduardo Campos.
Apesar disso, todas as instâncias responderam, cada uma à sua maneira, que não há como fiscalizar a contento a água que está sendo compartilhada. São os pipeiros, grande parte deles contratados em situação emergencial (Operação Carro-pipa), os responsáveis pela colocação do cloro e dos testes para checar se o líquido está apto para ser bebido. Outra resposta comum dos gestores é que as infecções, que têm levado principalmente crianças à morte, podem ter origem na falta de higiene da população. A suposição pode estar correta em parte, mas atribuir um aumento de quase 50% da doença apenas aos consumidores é no mínimo risível.
O Exército afirma que as águas vindas nos caminhões, distribuídas nos locais de maior colapso (zona rural), são em grande parte extraídas de poços já tratados (pela Compesa) e que todos os pipeiros a serviço do órgão (contratados em cada cidade atendida) recebem kit com cloro e aparelho que mede se a quantidade colocada está boa. “O pipeiro tem obrigação de fazer a limpeza da água”, afirma o tenente-coronel Keunny Raniere, chefe da seção de Comunicação Social do Comando Militar do Nordeste.
É a mesma afirmação do diretor de Extensão Rural do IPA e coordenador da Operação Carro-pipa no Estado, Genil Gomes. “Os pipeiros são os responsáveis por colocar cloro nos caminhões. São orientados para isso, devem colocar o cloro e esperar meia hora até que a água esteja limpa.” O problema é que o cloro é volátil, e evapora da água em um curto espaço de tempo. Caso o líquido seja novamente contaminado no processo de extração, acondicionamento (passando pela tubulação e permanecendo no caminhão) e entrega, será recebido como bom para beber. Gomes não crê que o aumento de 48,6% de doentes no Estado por DDA em relação a 2013 esteja relacionado à água dos caminhões. “Se você entregar o cloro ao agricultor, às famílias, é mais difícil eles usarem o material para limpar a água. Por isso já a entregamos limpa nas comunidades”. Os pipeiros do Exército recebem cloro. Os do Estado, não. Questionado sobre a razão, então, de tantos doentes em Pernambuco, ele é sintético: “Isso só a Secretaria de Saúde é que pode dizer.”
SEM PRECISÃO - A secretaria também não sabe precisar a resposta. Preocupada com o aumento dos casos e existência dos óbitos, a SES reuniu, na semana passada, representantes dos 86 municípios em situação de epidemia em um seminário realizado em Pesqueira. Representantes do Ministério Público de Pernambuco também compareceram. “É difícil identificar de onde vem essa água contaminada, se foi de carro-pipa, se foi de poço, cacimba... estamos investigando para saber a origem. Mas já intensificamos a distribuição de hipoclorito e cloro”, diz a diretora geral de Controle de Doenças e Agravos da SES, Roselene Hans, comentando que, no ano passado, havia realizado reuniões e capacitações em diversas prefeituras sobre o tema. Mas, como em diversos locais os gestores municipais não foram reeleitos, o trabalho terá que ser refeito.
É nesse cenário complexo, onde, em pleno século 21 e intensa industrialização do Estado, uma doença típica de países não desenvolvidos acomete milhares de pernambucanos. É nesse cenário que, neste momento, em algum sítio sertanejo, mais uma família abastece sua cisterna com uma água que, no final, ninguém pode garantir se está realmente limpa. Caso não, será mais fácil para todos apontar para o pipeiro.
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