Pela segunda vez, em minha vida, estive grávida. No fim das contas, não houve o reconforto como foi no nascimento de Sérgio, hoje com 4 anos. A perda aconteceu no fim de junho de 2013. Quando confirmei a gestação, o trauma do meu primeiro trabalho de parto me estremeceu.
Na primeira gravidez – a de Sérgio, aos meus 19 anos – realizei o pré-natal em uma Unidade de Saúde da Família (USF) de Santa Mônica, em Camaragibe, Grande Recife. Às dores do trabalho de parto, peregrinei pela Maternidade da Família, em Camaragibe; pelo Imip, nos Coelhos; e pela fatal Memorial Guararapes, em Jaboatão. Nesta, uma médica me disse: “Se eu fosse parir, não queria aqui”. Voltei pelo corredor escuro e estreito onde acompanhantes se amontoavam e pedi a minha mãe que fôssemos para casa.
Incontáveis toques ginecológicos sem tato ou trato. Os 3 cm de dilatação nunca chegavam aos 10 cm desejáveis. Idas e vindas a hospitais e maternidades. Médicos e médicas diferentes e indiferentes. Contabilizando mais de 39 horas de incertezas – aqui, o momento mágico já havia desfalecido – viria a ter Sérgio, puro e salvo, em maternidade particular por cesariana, dia 29 de março de 2010. Todo nascimento é um reconforto.
Eu não queria mais voltar à impessoalidade e desumanização do SUS. Pelas voltas que a vida dá, três anos depois, me vi novamente grávida e sem plano de saúde. Antes mesmo de iniciar o pré-natal, fui surpreendida por um sangramento. Era noite de 23 de junho de 2013. Na manhã seguinte, fui ao Hospital Tricentenário, em Olinda, mas não havia plantonista. “Você terá que ir à Maternidade Brittes de Albuquerque”, informaram. Apático, o médico plantonista dessa unidade sentenciou: “Seu caso não é emergência.” Para desencargo da consciência dele, me foram prescritos exames de sangue e de urina, realizados dois dias depois, na mesma maternidade.
Já a ultrassonografia endovaginal – que de acordo com o médico só poderia ser realizada dia 26, no Tricentenário – ficou pendente. Na quarta, levei o resultado dos exames para a médica do Tricentenário, que me apontou infecção urinária, cujo diagnóstico pode provocar aborto espontâneo. “Não posso te receitar remédio para conter o sangue sem ter certeza de que o embrião permanece vivo, pois já são quatro dias de sangramento”, disse, observando que o exame deveria ter sido feito com urgência. Não havia ultrassonografista na unidade de saúde. “Só amanhã. Venha pegar uma ficha a partir das 11h”, informou o recepcionista.
Na busca por um laboratório (particular ou não) que realizasse o exame, percorremos os bairros do Carmo, Bairro Novo e Casa Caiada. Nenhuma empresa particular se propôs a fazer o procedimento em emergência. Só na quinta-feira, dia 27, às 7h, em um laboratório privado, foi constatado aborto espontâneo. Tarde demais. Com o resultado em mãos, voltei ao Tricentenário. Fui informada de que precisaria ser transferida à Policlínica e Maternidade Professor Barros Lima, na Zona Norte do Recife, onde o procedimento necessário seria feito. Questionei a que métodos eu seria submetida. “Você será encaminhada à (maternidade) Barros Lima. Lá, eles podem fazer dois tipos de procedimentos. O primeiro seria introduzir comprimidos por via vaginal para induzir a expulsão. O segundo, seria a curetagem, que é o que deve ser feito. Eles têm como realizar diretamente a sucção e raspagem, e aí você não precisaria passar pelo trauma da expulsão”, explicou o médico, me aliviando
Chegando à maternidade, logo soube: não poderia comer. Entregaram uma bata para eu vestir. Fui levada à sala de expectação, onde era proibida a entrada do pai da criança e não poderia sequer levar celular. “Tome esse pedaço de sabão amarelo. O banheiro fica ali. Você toma banho, se enxuga com a bata que está usando e veste essa outra”, me instruiu a doula, voluntária que se transformaria em ponto de conforto em meio ao caos. O banheiro não tinha luz. “É assim mesmo”, relativizou.
Pouco depois chegou uma médica que, dispensando apresentações e informações, introduziu os primeiros comprimidos. As dores não tardaram a surgir, insistentes. Para acompanhá-las, a diarreia e o banheiro mal-assombrado. Minha mãe havia chegado e pedimos alguma medicação para amenizar dores e evacuação. Ignoradas. 'Eles nos tratam assim porque acham que nós provocamos o aborto', disse uma das pacientes, olhando para o chão.
Pedimos uma medicação para amenizar as dores e a evacuação. Fomos ignoradas. 'Eles nos tratam assim porque acham que nós provocamos o aborto', disse uma das pacientes, olhando para o chão.
Com o lençol e a bata cheios de sangue, voltei àquele banheiro. Fiquei lá, na escuridão, um bom tempo. Expeli, em um vaso sanitário desonesto, um pedaço do meu futuro. Exaurida, voltei para a cama, forrada com outra bata multiuso. Tremendo de fraqueza, dormi. Acordei com os gritos de uma mulher que dava à luz em uma cama ao lado. Todo nascimento é um reconforto.
Por dentro, a fome me rasgava – não tanto quanto minha perda ou indignação altruísta. Me serviram um jantar e só belisquei. Às 18h, outro médico. Como se quebrasse o pescoço de uma galinha – só que com diploma de medicina – ele travou um toque ginecológico. “Já pode ir para o bloco cirúrgico. Comeu?”, perguntou. Mainha respondeu: “Ela comeu só um tiquinho.” Ríspido, disparou: “Quando ela morrer na sala de cirurgia, entupida, você vai dizer que ela comeu só um tiquinho?” Olhamos para o chão.
Voltei ao sono embalado pela sinfonia de choros até as 23h, quando fui levada para a curetagem. Uma enfermeira segurou minha mão e com o gesto amparador fui anestesiada. Quando acordei, estava em outra sala, com outras três ex-grávidas em recuperação. Tive asco ao enxergar o novo banheiro às claras. Lodo no chuveiro. Aparadores de urina cheios de sangue. Precisava ir embora dali. No dia seguinte, após uma noite mal dormida, uma médica anunciou: “Arrume suas trouxas”. E saiu.
Diretor do Hospital Tricentenário justifica déficit no serviço de ultrassonografia
Foto: Clemilson Campos/Acervo JC Imagem
Sobre as denúncias, a direção do Hospital do Tricentenário respondeu que atende com escala regular composta por quatro médicos (dois obstetras, um anestesista e um pediatra por plantão). Quanto às ultrassonografias, são realizadas de segunda a quinta-feira, pois não há profissionais suficientes contratados para que o serviço seja oferecido 24 horas por dia. “Isso você não vai encontrar em nenhuma emergência de hospital público”, declarou o diretor da unidade, Gil Brasileiro. Em relação à falta de médico no plantão de 24 de junho de 2013, o gestor afirmou que é comum ocorrer o problema em dias de feriado. “É difícil conseguir quem queira ficar de plantão. Quem está escalado e não vai, leva falta, mas os profissionais ignoram a punição”, disse.