No começo dos anos 1980, em pleno set de Bonitinha, mas ordinária, Lucélia Santos costumava receber longos telefonemas, madrugada adentro, de Nelson Rodrigues. Num deles, o autor quis saber o que ela tinha sentido durante a antológica cena em que a mocinha talismã de uma arraigada família de classe média era currada por cinco negros. “Nelson era uma bússola, alguém que me dirigia também na vida”, resume a mulher que o dramaturgo considerava não “uma atriz, mas uma força da natureza”. Pois a mais rodriguiana atriz brasileira está, hoje e amanhã, na cidade, defendendo outro clássico do velho Nelson.
Em 2012, ano do centenário do dramaturgo, Lucélia recebeu da Fiesp convite para participar de leituras de peças sob a curadoria de Ruy Castro, devoto e biógrafo de Nelson. Culminando, a atriz acabou por protagonizar a montagem de A falecida ao lado dos atores da Cia Paulista de Artes, grupo de dedicação exclusiva à obra rodriguiana. A peça é encenada hoje, às 21h, e amanhã, às 20h, no Teatro RioMar, com entrada gratuita.
Quando recebeu o convite, Lucélia já não lembrava com nitidez do texto. “Lembrava mais do filme do Leon Hirszman do que do próprio texto. Foi maravilhoso reler, gosto muito”, diz ela, que tem Nelson como um dos pontos de separação entre o joio e trigo no que se pode chamar de dramaturgia. “Não consigo achar que qualquer coisa é teatro, tem muita coisa ruim. Nelson é grande teatro. O resto não é”, diz Lucélia, curiosa por novos dramaturgos. “Até fiz uma peça do Jô Bilac, que não tem nem 30 anos, e é uma promessa”, diz ela, que encenou Alguém que acaba de morrer lá fora.
“No Rio, tem vários escritores novinhos”, diz ela, também interessada na dramaturgia do pernambucano radicado em São Paulo Newton Moreno, responsável por Ópera, um dos últimos grandes sucessos do teatro feito em Recife, com o Coletivo Angu de Teatro. Newton é dono de prêmios como o Shell e celeiro dramatúrgico de estrelas como Andrea Beltrão, Marieta Severo e Lília Cabral. “Vi As centenárias, aquela peça das duas carpideiras, e fiquei encantada. Quero muito conhecê-lo pessoalmente”.
A tragicomédia sobre o casal de suburbanos é, para Lucélia, um texto atemporal. “Com as características da tragédia clássica, A falecida não envelhece. Tenho amigos que não tem nada a ver com meio o artístico, profissionais bem sucedidos, liberais, que não são grande conhecedores de teatro. Essas pessoas, hoje, ficam muito impressionadas com a peça.”
Se é para usar um adjetivo rápido, impressionante é um bom rótulo para A falecida. Com a moldura fatalista da tragédia grega, a peça dá conta da vida do casal Zumira e Tunico. Ele, um malandro arquetípico, bebum nas horas vagas (todas) e tão viciado no Fluminense como o próprio Nelson Rodrigues. Ela, uma dona de casa às voltas com a cisma, revelada por uma cartomante, de que uma mulher lhe vai arruinar vida. Na impossibilidade de outro êxito, resolve morrer para estrelar um funeral jamais visto no bairro, um catalizador de todas as invejas mortais possíveis. A estrutura narrativa da peça é ágil, elipses bem urdidas. Essa montagem com Lucélia tem apenas 70 minutos de duração.
Recentemente, Lucélia Santos acabou por tomar de Sônia Braga o título de Dama do Lotação. Não por ter redimensionado o papel da dona da casa que administra a crise com o marido copulando, disciplinadamente, com anônimos encontrados nos coletivos. Mas porque, há uns meses, se viu no centro de uma polêmica depois que parte da elitista classe média brasileira a atacou com insultos nas redes sociais quando um vídeo seu andando de ônibus no Rio de Janeiro acabou divulgado na internet.
“Foi uma coisa idiota, que acabou sendo uma coisa importante. Se não se mudar a mobilidade urbana, daqui a pouco ninguém mais anda”, diz. “No Rio, eu tive algumas reuniões com empresários de ônibus e eles me disseram que eu mudei alguns paradigmas, porque a a intenção é fazer com que a classe média ande de ônibus”, diz ela, sempre às voltas com questões coletivas. “Eu estou participando de uma manifestação em setembro pelo planeta, as pessoas não estão conscientes sobre o nível de destruição do monóxido de carbono”.
A atriz gosta de dizer que não é uma “atriz burguesinha que se limita a fazer teatro no Leblon”. Viajar com o teatro, para ela, é também um ato paciente de militância. “Não chove dinheiro para o teatro, então, quando tem dinheiro, temos que viajar. O País ainda é muito carente de educação e cultura”, diz a atriz que, aos 57 anos, anda mais viva do que nunca. “O tempo tem sido meu aliado. Ando cada vez mais atirada”.
A falecida – Com Lucélia Santos, Walter Breda, Eduardo Silva e Cia. Paulista de Artes. Teatro RioMar, hoje, 21h, e amanhã, 20h. Os ingressos serão distribuídos gratuitamente na bilheteria