Depois de convidado, cancelado e reintegrado de última hora à programação oficial do 28º Festival de Inverno de Garanhuns, o espetáculo “Jesus, Rainha do Céu”, finalmente foi apresentado na cidade. Mas sob tensão, ameaças e impedimentos. Logo depois de uma tranquila primeira apresentação para um público de cerca de 300 pessoas, os organizadores do espetáculo receberam a cópia de um novo mandado de segurança assinado pelo desembargador Roberto da Silva Maia, determinando a suspensão do espetáculo da grade oficial. A segunda sessão transcorreu sob tensão aguda.
Atendendo ao pedido da Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns, o desembargador concluiu, no mandado de segurança, que a “peça viola o direito líquido e certo ao sentimento religioso, ao retratar Jesus Cristo indevidamente”. No começo da noite da sexta, Márcia Souto, presidente da Fundarpe, recebeu a notificação. “Lamentamos a mudança da Justiça em tão pouco tempo, mas não temos como não acatá-la ou incorreríamos em crime de desobediência”, justificou. Com a decisão, foi revogada a decisão anterior do desembargador Silvio Neves Batista, determinando a imediata reintegração do espetáculo à grade oficial do festival.
Apesar da retirada do apoio oficial do FIG, o espetáculo teve uma segunda sessão realizada de forma independente pelos produtores e organizadores. “Jesus disse: vai ter peça sim. A liminar cancela da programação oficial, mas vamos fazer outra sessão de maneira independente. Venham com amor”, disse, minutos antes da sessão, o artista e ativista Chico Ludemir, um dos responsáveis pela campanha de arrecadação de dinheiro para viabilizar a peça na cidade desde a primeira proibição. A tranquilidade, contudo, durou pouco.
Enquanto a segunda sessão acontecia, iniciada às 21 horas, cerca de quarenta policiais em sete viaturas de polícia foram ao local do espetáculo acompanhados de um oficial informar da nova proibição. Houve exaltação de ânimos e discursos inflamados entre os presentes. A atriz Renata Carvalho foi obrigada a interromper o espetáculo que acontecia debaixo de uma grande tenda montada pela Fundarpe numa casa da cidade e deu continuidade ao monólogo numa área aberta, sob chuva. “Assim, há o entendimento de que o espetáculo não aconteceu sob o apoio oferecido pela Fundarpe”, disse Severino Pessoa, chefe de gabinete da Secretaria de Cultura de Pernambuco. Logo depois, acuado pelo público, Pessoa precisou sair do local escoltado.
Natália Mallo, diretora do espetáculo, descreve os momentos tensos:
“Tem horas em que ou você vive ou você filma. Hoje aprendi: quando a amiga travesti quebra tudo, você ajuda (rs). Tudo correu bem na primeira sessão. No intervalo, um estrondo e muita fumaça. Muita cara de prenúncio. Então, após soltarem bombas no espaço, chega uma liminar judicial (a pedido da Ordem dos Pastores Evangelicos) pedindo mais um cancelamento, e nós decidimos desobedecer. Daí a segurança contratada (“contrapartida” oferecida pelo FIG) se volta contra nós, e proíbe a entrada do público. Bem, a amiga Renata Carvalho disse "Basta". Ela quebrou tudo (não é metáfora), expôs os covardes e berrou todas as verdades. A força era tanta que um batalhão inteiro da PM não teve coragem de agir. “Acalma ela!”, gritaram pra mim, e eu pensei: 'Não. Ouçam, e aguentem!" E permaneci dando suporte e vigiando a movimentação. Foi uma catarse e tanto. Renata abre os portões e pede a invasão do público. O público ocupa o espaço, aos gritos de “Fascistas!” Nós rasgamos a liminar e começamos o espetáculo, quando os censores se distraíram para assinar papéis. Cortaram o som (cantei a trilha sonora à capela), cortaram a luz. Tiraram o toldo que protegia o público da chuva, e a peça não parou. O público ficou até o fim, e foi a nossa proteção. Agora, quando achamos que acabou, nova decisão exige novamente a inclusão na programação do festival pedindo que seja apresentado amanhã. Cenas para os próximos capítulos. Que fase!"
Após a nova interrupção, a peça foi retomada de novo na área ao ar livre.
“Desde que a peça estreou, há dois anos , em Londrina, sofremos perseguições. Esse ódio se deve à construção social, à folclorização e à criminalização dos corpos trans. Por isso, lutamos por representatividade trans. Queremos estancar a sangria. No Brasil, a vida média de uma trans é de 27 anos. Se passarem a nos incluir nos filmes, nas peças e nas novelas, a convivência mudará a situação. Tenho certeza de que, em trinta anos, o Brasil deixará de ser o país que mais mata trans no mundo”, disse a atriz, após a sessão iniciada às 18h30, para uma plateia de cerca de 300 pessoas, emocionada e escoltada por dois seguranças.
Numa mansão cujo endereço só foi revelado por mensagem de celular ao público cerca de uma hora antes, a peça teve sua primeira sessão, de forma tranquila, iniciada às 17h30 da sexta, sob um esquema de segurança com mais de uma dezena de agentes de proteção, quatro viaturas da Polícia Militar e revista minuciosa do público, com detecção de metal para evitar armas. Os organizadores temiam algum atentado contra a atriz trans Renata Carvalho. No intervalo das duas sessões, uma bomba-rojão foi estourada por trás do imóvel em que acontecia o espetáculo.
Um dia antes, a Fundação do Patrimônio Histórico de Pernambuco resolvera acatar a recomendação do Ministério Público e do Tribunal de Justiça de Pernambuco de reintegrar a peça à grade oficial do FIG. Antes do festival, o secretário de Cultura de Pernambuco, Marcelino Granja, foi obrigado a cancelar o convite ao espetáculo em função da pressão liderada pelo prefeito de Garanhuns. Izaías Regis alegou que o espetáculo atacava “a família cristã” e ameaçou vetar o uso de quaisquer espaços municipais para o festival caso a peça não fosse cancelada.
No espetáculo, a atriz transexual Renata Carvalho interpreta Jesus, numa reflexão sobre como seria a volta de Cristo à terra no mundo atual encarnado num corpo diferente. Na plateia do espetáculo, jovens usavam camisetas com frases de militância pela diversidade sexual.
“Nós íamos fazer o espetáculo nem que fosse em praça pública, de auto-falante”, comentou, na cidade, Renata Mallo, tradutora do texto, idealizadora e diretora do espetáculo, que pretende reunir a trajetória de vetos e censuras que a peça vem sofrendo no País desde sua estreia em livro e documentário.
“Nós consideramos o episódio de censura, que é anticonstitucional em qualquer aspecto, também uma violência de estado contra o corpo trans e todos os corpos fora da normatividade. Uma violência contra a atriz Renata Carvalho, contra o espetáculo e contra a própria arte, uma violência simbólica e também direta, o que é muito grave. Que vem, aliás, criando auto-censura e censura prévia nos próprios mecanismos oficiais da cultura no País”, disse a diretora, reforçando que o espetáculo, ao final, tem mensagem cristã.
“É muito triste assistirmos a discursos de ódio e preconceitos naturalizados nas instituições. Estão usando a religião como pretexto para disseminar o ódio e a discriminação. Estamos recebendo perseguições e ameaças de morte. Esse texto, inclusive, foi escrito por uma escritora cristã, é um texto cristão, que abraça a todos, que ensina que não devemos discriminar. Onde está escrito que temos que discriminar e excluir as pessoas?”, disse.
Na manhã deste sábado (28), o presidente em exercício do Tribunal de Justiça de Pernambuco determinou cancelamento do mandado de segurança anterior, em favor da Associação Dos Pastores Evangélicos de Garanhuns, e determinou nova volta do espetáculo à grade oficial - mesmo com o festival praticamente tendo chegado ao fim.