Abelardo tem a arte com missão de vida

Artista, que uniu produção estética e política numa só profissão de fé, celebra 90 anos de uma vida intensamente criativa
Mateus Araújo
Publicado em 30/07/2014 às 10:42
Artista, que uniu produção estética e política numa só profissão de fé, celebra 90 anos de uma vida intensamente criativa Foto: Helia Scheppa/JC Imagem


A fachada da casa 307 da Rua do Sossego, no Centro do Recife, pintada de um amarelo ameno, esconde um cenário descomunal que existe além da porta de madeira. É trancado em um templo de arte e amor que um dos homens mais apaixonados pela vida (e por tudo que ela lhe proporciona) resiste a um tempo em que, segundo ele mesmo, “políticos já não fazem mais política”. Sobrevive fazendo das suas esculturas, pinturas e gravuras “uma linguagem-brado e como gesto de trincheira”, como definiu perspicazmente o crítico José Geraldo Vieira, em junho de 1967, em artigo do jornal Folha de S. Paulo. 

Abelardo da Hora, nesta quinta (31) um nonagenário, é um menino eterno, de sorriso amplo e sonhos infinitos. Nas terras da Usina Tiúma, em São Lourenço da Mata, onde seu pai trabalhava como homem de confiança do proprietário, foi descobrindo a beleza da natureza e se encantando com o verde e a amplitude do horizonte.

No Recife, para onde se mudou em 1932, viu a felicidade dos meninos pobres que brincavam nas ruas do bairro da Iputinga serem a extensão daquilo que ele tinha como liberdade, e guarda até hoje como exemplo claro e concreto da alegria. Aquela felicidade que João Guimarães Rosa já disse se achar em horinhas de descuido.

No corredor estreito desta casa de fachada miúda, mas longilínea, onde Abelardo esculpe sua família – a da arte e a da vida – empilham-se esculturas e quadros que revelam o olhar dele sobre os seres humanos, a miséria, a cólera e os contentamentos de um povo pernambucano, também reflexo amplo de um Brasil desconforme. Homem engajado artística e politicamente, está sempre antenado ao que acontece fora da sua residência-ateliê. Lê três jornais locais e um nacional todos os dias.

Filho de uma família de sete filhos (Abelardo é o segundo e um deles é o cantor Claudionor Germano), o escultor, pintor, gravador e desenhista Abelardo começou a moldar suas primeiras obras nas aulas da Escola de Belas Artes do Recife, antes de ingressar no curso de direito da Faculdade de Olinda. Foi amparado e apadrinhado pelo industrial Ricardo Brennand – ex-chefe do seu pai, Cazuza – que Abelardo deu seus primeiros grandes voos nas artes plásticas. No ateliê, dentro das monumentais terras da rica família, o jovem de 17 anos foi trabalhando suas obras na cerâmica. 

Neste momento, Abelardo deu aulas a Francisco Brennand (“ele desistiu do curso de Direito para estudar arte comigo”), e acabou se apaixonando pela bonita Conchita Brennand. E foi por causa dela que deixou a casa – após fazer uma obra, A torre dos meus sonhos, em que abraçado com as pernas de uma moça havia um homem cujo rosto era dele mesmo. “Seu Ricardo ficou em silêncio. Vi que passei dos limites e resolvi ir embora no dia seguinte, mas mantivemos nossa amizade”, lembra.

Mas a vida lhe foi generosa no campo dos afetos. Em abril de 1948, quando fazia sua primeira exposição de escultura, Abelardo da Hora conheceu seu grande amor, Margarida Lucena. Além da beleza, era dona de um dom invejável à maioria dos apaixonados: lidava com os ciúmes de maneira tranquila. Passava quase cega diante das inúmeras obras femininas que o artista adora fazer. “Ela achava linda a minha maneira de esculpir as mulheres”. 

De uma paixão meteórica – “da exposição, saímos caminhando pelo Bairro do Recife; quando cheguei em casa com Margarida, minha mãe foi logo dizendo ‘meu filho, esta sim era que você devia namorar e casar’” – nasceu o casamento. Abelardo deixou a antiga noiva e, seis meses depois, já morava com Margarida, com quem teve sete filhos e de quem ficou viúvo há quatro anos. O amor, entretanto, continua presente em todos os cantos, além de ter sido imortalizado no busto feito por ele para a amada.

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