O arquiteto e artista visual Heinrich Moser veio temporariamente ao Recife, em 1910, a convite de uma tia, dona da Casa Alemã, para que reformasse o espaço comercial com seus conhecimentos arquitetônicos. O envolvimento com a arte e a paixão pelo Nordeste, no entanto, fizeram com que o jovem de 24 anos estabelecesse moradia fixa na Cidade Maurícia. Aqui, introduziu a apurada técnica de pintura sobre vitrais, pela qual se tornou conhecido, enveredando, também, pela arte gráfica. Até sua morte, em 1947, executou um tanto de desenhos e ilustrações quase desconhecidos pelo público geral. Pelo menos até agora.
Um projeto de extensão, encabeçado por estudantes e professores do campus Olinda do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), tem se dedicado a resgatar a memória contida em capas de livros, jornais, revistas, anúncios e demais peças elaboradas pelo alemão. Em Heinrich Moser: arte e memória gráfica em Pernambuco no início do século XX, cinco alunos dos cursos técnicos em Artes Visuais e Computação Gráfica, a professora Ana Carolina Machado, supervisora do Projeto, e Leopoldina Mariz, técnica em Artes Visuais, idealizadora e coordenadora do trabalho, se propuseram a criar um catálogo virtual das obras de Moser. O projeto partiu da curiosidade de Leopoldina, após encontrar uma edição de 1924 da Revista de Pernambuco, com capa ilustrada por Moser, na casa de sua mãe.
Seguindo o conselho do professor Silvio Campello - responsável por estudos em artes gráficas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) -, Leopoldina elegeu as ilustrações do artista como objeto de estudo. A iniciativa foi aprovada no edital de preservação cultural do governo alemão, que concedeu um apoio de 3.500 euros para custeio das atividades. Iniciado em janeiro de 2016, o processo de catalogação parte de um trabalho de pesquisa e curadoria em bibliotecas e arquivos públicos e pessoais em busca dos desenhos. “Visitei os guardados de Ângela Távora Weber, mulher do neto do artista e autora do livro Moser: um artista alemão no Nordeste, além da socióloga Silke Weber, também neta de Moser”, contou Leopoldina.
Uma vez encontradas, as obras são fotografadas, as fotografias produzidas passam por tratamento num software de imagens e posterior análise teórica, com base nos textos das escritoras Martine Joly e Donis Dondis. Até o momento, foram descobertas cerca de 40 peças, entre elas, dez capas deste Jornal do Commercio ilustradas por Heinrich Moser entre as décadas de 1930 e 1940. Nelas, o registro da linguagem, vestimentas e assuntos de um tempo.
Desenvolvido dentro do ambiente acadêmico, a atividade pretende democratizar e aprofundar o estudo das obras gráficas pernambucanas, área em que, segundo Leopoldina, há muito a ser pesquisado sobre a cultura, comportamentos e costumes locais. “Estou concluindo a graduação em História e me interessei pelo projeto pela chance de fazer um restauro de uma produção importante para Pernambuco”, pontuou o aluno Ítalo Albuquerque.
O grupo continua a busca por outras obras de Moser e disponibiliza o e-mail extensaomoser@gmail.com para quem tiver material que possa ser fornecido para a catalogação. O trabalho será concluído até dezembro, com a disponibilização, na internet, do resultado digitalizado. Também será preparado um DVD para distribuição em escolas. “Vamos terminar o estudo às vésperas de uma data importante: em 2017, completam-se 200 anos da primeira impressão feita no Estado, à época da Revolução Pernambucana de 1817”, finaliza Leopoldina Mariz.
Formado em duas instituições alemãs de Belas Artes, Heinrich Moser dominava diferentes técnicas de produção artística. No Brasil, onde morou por quase 40 anos, foi a arte de usar peças de vidro como tela que lhe rendeu fama de mestre. Ligada à tradição da arquitetura gótica, a técnica, dominada a princípio pelos europeus, foi trazida ao Brasil no fim do século XIX por Conrado Sorgenicht. Coube a Moser o feito de torná-la popular na capital pernambucana, levando também para residências os vidros coloridos antes restritos às catedrais e basílicas.
No fim da década de 1980, um bom número desses casarões foi colocado abaixo, levando junto de concreto e tijolos muitos dos vitrais pintados por Heinrich. Temendo que o acervo desaparecesse da memória da família, Ângela Távora Weber, pesquisadora e esposa do neto de Moser, relatou a produção que encontrou no livro Moser: um artista alemão no Nordeste (Poll Editorial, 1987). “Ele pintou muitas cenas do cotidiano nordestino, mas encontrei várias delas já aos pedaços, não houve a preocupação em retirá-las antes da demolição. Muita coisa foi perdida”, contou Ângela.
Foram as igrejas e os prédios de órgãos públicos que preservaram os vitrais. Quem sobe as escadarias da antiga entrada principal do Palácio da Justiça, no bairro de Santo Antônio, é recebido por um grandioso vitral de 1930, reproduzindo a primeira Assembleia dos Escabinos, realizada em 1640 por Maurício de Nassau, então governador do Recife Holandês. A obra, reconhecida nacional e internacionalmente, é considerada o principal vitral profano - sem ligação com temas religiosos - feito pelo artista.
“Nele se observa as texturas dos tecidos – veludos, rendas inglesas –, e as cores fortes, roxos, vermelhos e laranjas, que Moser usava para retratar a coloração quente típica do nordeste. São características pelas quais reconhecemos sua autoria”, explica a professora e vitralista Suely Cisneiros. Estudiosa e seguidora do modo de criação de Heinrich, foi ela a responsável pelos dois restauros feitos na peça, a primeira em 1997 e uma outra há cerca de seis anos.
Em outra escadaria, a do Clube Português, na Madalena, repousa Os Anfitriões (1939). As igrejas das Graças, do Carmo (a primeira a receber peças confeccionadas pelo artista no Recife) e da Boa Vista são as que guardam os traços religiosos, que chamam a atenção, além das cores, pelas expressões faciais das personagens bíblicas retratadas.
Um dos fundadores da Escola de Belas Artes do Recife (1932) - instituição posteriormente incorporada ao Centro de Artes e Comunicação da UFPE -, Moser teve como principal discípula a professora Aurora de Lima, que difundiu a técnica pela cidade até meados de 1980. O trabalho mais conhecido dela são os dois grandes jarros de flores coloridas que ornamentam o Cinema São Luiz desde a inauguração, em 1952.