Sem júris, sem prêmios. Essa era a filosofia da Associação de Artistas Independentes de Nova York, criada em 1916 sob os moldes da Société des Artistes Indépendants de Paris, para promover exposições anuais da nova vanguarda artística de então. Qualquer um poderia participar. Bastava preencher uma ficha de inscrição e pagar a taxa de US$ 6 que o seu trabalho seria exposto.
Vivendo em Nova York desde 1915, o pintor, escultor e poeta Marcel Duchamp (1887 – 1968) era um dos membros da comissão de organizadores do Salão dos Independentes, que aconteceria em abril de 1917. O francês já estava bem estabelecido em sua nova pátria. Antes mesmo da sua chegada, o artista havia causado controvérsia e burburinho com a tela cubista Nu Descendo as Escadas, exposta em 1913 no Armory Show e criticada e parodiada por críticos e cartunistas – até o presidente Theodore Roosevelt malhou a obra em ensaio publicado na revista The Literary Digest. Mas, inquieto, Duchamp não parou com as provocações e resolveu fazer um teste com os próprios colegas da Associação. Uma piada prática que mudou para sempre a história da arte.
Nos últimos dias para o prazo de submissão de trabalhos, chegou um pacote com uma obra inusitada: um mictório, intitulado como A Fonte e com a assinatura R. Mutt, 1917 – até então, ninguém sabia que este era um pseudônimo de Duchamp. O Salão dos Independentes aconteceu no dia 8 de abril, mas sem A Fonte. Após muita discussão, foi acordado que o urinol era um objeto “vulgar, imoral”, um plágio, e que não deveria ser admitido. “A Fonte pode ser um objeto muito útil em seu lugar de origem, mas seu lugar não é em uma exposição de arte e não é, por definição, uma obra de arte”, justificou a comissão em nota de resposta ao crescente interesse da imprensa no caso.
Decepcionado, Duchamp deixou a comissão. No mês seguinte, a revista dadaísta The Blindman, editada por Beatrice Wood, Henri-Pierre Roche e pelo próprio Marcel Duchamp, veio recheada de análises sobre o caso. Após uma fotográfia d’A Fonte em página inteira, um editoral defendia: “A fonte do senhor Mutt não é imoral, não é absurda, não mais do que é uma banheira. É um acessório que você vê todo dia. Não tem importância se Mutt fez a fonte com suas próprias mãos ou não. Ele ESCOLHEU. Ele pegou um objeto da vida cotidiana e posicionou de modo que seu uso comum desapareceu sob um novo nome e ponto de vista – criou um novo pensamento para aquele objeto”. Na sequência, a artista Louise Norton criticava a “Comissão de Censores”, chamava a obra de “o Buda do banheiro” e respondia: “A Fonte não foi feita por encanadores, mas pela força da imaginação”.
A Fonte foi o quinto trabalho de Duchamp a utilizar a técnica que ele chamou de readymade, ou seja, selecionar e modificar “objetos já feitos” – os primeiros, também muito conhecidos, foram a Roda de Bicicleta (1913) e o Porta-Garrafas (1914).
Na tradição da história da arte, uma obra é fruto de um investimento manual de transformação de objetos (manipula-se as tintas e a tela e cria-se uma pintura, por exemplo). No caso dos readymades, a própria escolha do objeto é o ato estético. Com isso, Duchamp retorna, de modo mais incisivo, a uma questão meditada desde Platão: o que é a arte? Ao mesmo tempo em que qualquer coisa pode ser uma obra de arte, uma obra de arte não é qualquer coisa. Então como distinguimos estes “qualquer coisa”?Nas palavras do minimalista Sol LeWitt, "a ideia se torna a máquina que faz a arte".