As paredes do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) já estão devidamente pretas para receber a exposição A Arte é Um Manifesto – 30 Anos de Devotos, do guitarrista, designer e artista visual Neilton Carvalho. O “paint it black” foi uma exigência dele. Não fazia sentido expor as suas mais de 60 peças, pinceladas com doses de contestação e criticidade, nas paredes brancas do museu. O preto é a cor do punk, da negação dos padrões estéticos, e também símbolo do caos em que a sociedade brasileira se encontra. Identifica-se ainda com o tom de protesto da Devotos, o trio de punk rock hardcore do Alto José do Pinho que ele forma com Cannibal (baixo e voz) e Celo Brown (bateria). Mesmo reconhecida no circuito nacional e internacional, a banda levou três décadas para ser ouvida em alto e bom som no Marco Zero do Recife.
Com abertura amanhã, às 19h, a mostra é um passeio pela linha do tempo da Devotos, que tem a sua história confundida com a do próprio Neilton. “Digo isso porque a Devotos me deu estrutura e liberdade para fazer o que faço até hoje. Costumo dizer que fui adotado pelo punk porque a banda já era antes mesmo de eu ser”, conta Neilton, que seguia a filosofia punk do Do It Yourself (Faça Você Mesmo), antes mesmo de saber o que significava, que partia da autossuficiência e da autonomia. E Neilton foi autodidata em praticamente tudo o que fez e faz. Nas artes, na música, na eletrônica. Pelo fato de que não tinha dinheiro para ter e “ser” o que queria.
Curioso desde criança, Neilton aprendeu a tocar guitarra frequentando os sebos que vendiam as revistinhas americanas Guitar Player. “Mesmo sem entender nada de inglês, estava eu lá, observando as figurinhas, tentando desenrolar”. Foi assim que aprendeu também a montar e desmontar seu primeiro instrumento, uma Sonic, da Giannini. Anos mais tarde, já trabalhando como vendedor de peças numa eletrônica, tentava juntar o salário para comprar uma guitarra melhor, mas nunca dava. “Foi aí que percebi que podia montar uma, com os materiais que eu recolhia no quintal da oficina, cheio de restos de TVs e eletrodomésticos”. Assim surgiu a “Gorda”, como chama a sua guitarra que pesava 5 kg e lhe acompanhou por muitos anos na Devotos, um dos itens de memorabilia da exposição.
Graças a esse espírito de “professor Pardal”, Neilton encabeça um projeto chamado Altovolts, no qual constrói caixas acústicas e amplificadores valvulados. A primeira de suas facetas a ser despertada, entretanto, foi a de desenhista. “Meu pai trazia CDs do Martinho da Vila para casa e eu achava as artes das capas e dos encartes lindas, apesar de não ser muito fã da sonoridade. Então passei a copiar, decalcar”, relata, comentando sobre o processo de desenvolvimento do seu traço, aliado ao curso de artes gráficas na Escola Técnica Estadual Professor Agamenon Magalhães (Etepam). “Minha maior referência eram os desenhos animados da dupla Hanna-Barbera. Para a minha formação, eles e Rembrandt têm a mesma força”.
Ocupando quatro salas em dois andares do Mamam, a exposição dispõe de todos os originais que deram origem às capas da Devotos. “Essa exposição devia ter rolado nos 18 anos do grupo, mas eu tinha perdido o original da capa do disco de estreia (Agora Tá Valendo, 1997). Não quis expor esse acervo sem recuperá-lo. Só há pouco descobri que estava no Rio de Janeiro com uma menina que fez parte do projeto gráfico do disco”, conta, rindo. A partir do segundo álbum de estúdio, o epônimo Devotos (2000), Neilton passou a ser responsável por todos os projetos gráficos dos discos, não só pela ilustração de capa. Todos eles estarão à mostra, assim como backdrops, pôsteres, ingressos, camisetas, vídeos e capas de fitas demo e vinis, além da “Gorda” e do primeiro contrabaixo de Cannibal.
Dentre as peças que mais se destacam estão o Coração e o Cérebro, a Cruz e o Cifrão e a Santa e o Menino. A primeira é o quadro de um “coração-maquinário”, uma máquina que pulsa graças às engrenagens menores (a periferia), em contraponto com um cérebro endinheirado, que só visa o lucro. É uma releitura de um backdrop dos anos 2000 e uma das artes mais explícitas da mostra. Já a Cruz e o Cifrão, exposta em formato de quadro e backdrop, é a primeira das cinco logos da Devotos. Criada entre 1989 e 1990, antes mesmo da letra “D” que tanto utilizam. “Esse símbolo, atual e representativo, surgiu de um erro. Na época em que a gente fazia os releases com uma máquina de datilografia, Celo bateu o ‘S’ em cima do ‘T’, por acaso. Quando peguei já deu a ideia na cabeça”, relata.
Já a Santa e o Menino, expostos em duas telas feitas com tinta acrílica, são resultantes do trabalho de Neilton para o disco epônimo. São duas obras relativamente iguais, mas igualmente contestadoras. Uma delas mostra uma santa branca, segurando um menino negro, humilde, retratado com uma auréola de anjo e um rabo de diabo. A outra, inverte os papeis. Mostra uma santa negra e um garoto banco, nas mesmas perspectivas e proporções. Em ambas as telas, há uma fita que recobre o olhar dessa criança, não raro tido como marginal. "A inspiração vem da Rua do Imperador. Ponto de miséria e religiosidade", explica o guitarrista. A relação com o divino, sob uma ótica maniqueísta, inclusive, está presente em diversas peças. "Como certa vez disse Cannibal, a gente tem que saber se dar bem com Deus e o diabo".
Reluzindo como feixes em meio à escuridão, essas obras são todas compostas através de misturas do amarelo, vermelho e azul. “Eu desenvolvi uma técnica de ir misturando essas cores-base na própria tela. Era o que eu tinha para trabalhar e isso foi moldando meu estilo”. A prática e a persistência levaram Neilton a produzir trabalhos para nomes como Academia da Berlinda, Cordel do Fogo Encantado e Eddie. Mas ele não se firmou apenas pela técnica. Sua essência de adolescente roqueiro não-conformista foi parte fundamental nesse processo. E reflete em quem ele é hoje.
“Nunca imaginei que a Devotos chegaria até aqui. Estamos encarando tudo como um reset. Vamos começar de novo”, celebra Neilton, mencionando o novo álbum de inéditas, O Fim Que Nunca Acaba, previsto para ser lançado no segundo semestre deste ano. "A gente tem encarado como se tivesse voltado para os anos 80. O cenário está muito parecido. Tem acontecido vários shows no subúrbio, com cartazinhos de xerox na parede. Até a forma da política está muito parecida, muita repressão, muita censura. Mas as pessoas que fazem parte da cena estão mais ativas, se alimentando dessa situação para compor, digamos assim".