Já era madrugada de segunda-feira quando Meryl Streep, 67 anos, vestida num Givenchy couture by Ricardo Tisci – um longo negro ornado com pedraria que descia em “x” a partir dos seus ombros, cruzando sobre seu torso até a altura dos quadris –, assumia o microfone para proferir seu discurso de agradecimento na cerimônia do Globo de Ouro.
A atriz, nascida em Nova Jérsei e aluna de escolas públicas – como fez questão de pontuar na fala que se seguiria – ganhava ali o Prêmio Cecil B. de Mille, símbolo do reconhecimento pela sua contribuição ao cinema. Na vida e na arte que abraçou, inúmeras foram as vezes em que Meryl acertou o alvo, sem se esquivar de ser o próprio alvo quando necessário. Não foi nem um pouco diferente dessa vez.
Antes de ser conduzida ao palco, porém, Meryl mereceu a devida apresentação (como se fosse preciso) ao público composto por celebridades de quilates variados que se distribuíam pelas mesas espalhadas no salão do Hotel Beverly Hilton, local onde transcorreu o evento. No papel de mestre de cerimônias estava Viola Davis, 51, trajada com um vestido Michael Kors amarelo, de ombro único, fazendo com que sua pele parecesse puro chocolate derretido e encapsulado numa moldura de sol. Impressionante.
Viola, que nasceu na Carolina do Sul, Estado norte-americano onde a escravização de africanos encontrou defensores inflamados, já descreveu sua infância como tendo sido vivida na mais abjeta pobreza, num seio de uma família disfuncional. Em 2015, Viola se tornaria a primeira afro-americana a ganhar um Emmy de Melhor Atriz em Série Dramática, por seu desempenho como a advogada Annalise Keating em How to Get Way With Murder. Antes disso até, em 2011, no papel de Aibileen Clark, na adaptação cinematográfica do livro de Kathryn Stockett, Histórias Cruzadas (The Help), foi indicada ao Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme Dramático. Assim como sua personagem nesta produção, a mãe de Viola havia trabalhado como empregada doméstica numa conjuntura segregacionista, que sempre considerou as pessoas da raça negra como propriedades.
O encontro entre essas duas forças da natureza – Meryl e Viola – aconteceu quando já passavam cinco minutos da meia-noite. E a história, a partir daí, tomou um feliz rumo de trama anti-Cinderela, na qual duas mulheres – lindas, maduras e vestidas com deslumbrantes trajes de gala assinados pelos mais importantes designers de moda – fizeram não apenas o show adorado pelos fotógrafos e comentaristas de red carpet, mas a alegria dos que há muito tempo desejam ouvir mais e mais afirmações de empoderamento feminino. Especialmente numa indústria que, durante um tempo longo demais (e ainda hoje), privilegia a mulher como invólucro que dispensa conteúdo.
“Eu vou dizer agora: você me fez ter orgulho de ser uma artista. Você me fez sentir que o que eu tenho em mim – meu corpo, minha cara, minha idade – é o bastante”, disparou Viola em direção ao alvo daquela homenagem, enfatizando um ponto crucial na cruzada feminina por seus direitos: quanto mais representações positivas, independentes e assertivas de mulheres forem propagadas pela mídia, tanto maior será o campo magnético gerado para atrair e reforçar condutas similares de protagonismo, que é a ação de tomar para si as rédeas da própria vida, sem esperar consentimento ou aprovação por parte de quem tem objetivos que miram um alvo completamente diverso.
O poder gravitacional de exemplos como Viola e Meryl tem força suficiente para impor uma nova órbita e uma nova ordem.
O DISCURSO
Meryl Streep abriu sua fala parafraseando o colega Hugh Laurie (ator britânico que ficou conhecido pelo papel-título na série Dr. House), ratificando que aquela premiação colocava na mesma sala três dos segmentos mais vilipendiados pela sociedade americana na atualidade: Hollywood, a imprensa e os estrangeiros, uma vez que o Globo de Ouro é uma distinção entregue pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood (HFPA), um clube exclusivo e secreto integrado por 90 jornalistas, alguns de meios de comunicação reconhecidos, outros de publicações desconhecidas.
O recado replicado por Meryl Streep tinha endereço certo: a intolerância que foi pedra fundamental durante a campanha de Donald Trump para presidência. O futuro chefe de estado norte-americano não demorou para passar recibo e acusar o golpe: “Meryl Streep, uma das mais superestimadas atrizes de Hollywood, não me conhece mas me atacou na noite passada no Globo de Ouro. Ela é uma ...”, tuitou. Deixando reticências como frase a ser concluída, confiando no ódio avassalador que emerge prontamente das redes sociais quando alguns usuários se veem confrontados com verdades que não são as suas.
E completou a diatribe desmerecendo as observações da respeitada atriz por ser ela uma “Hillary lover”. Mulheres desacreditadas no nível pessoal e profissional por ressentimento da contraparte masculina é o roteiro mais batido de Hollywood, e do mundo.
Meryl Streep citou a diversidade como aquilo que faz Hollywood ser o que é, sendo a “estranheza” do outro o tecido que, costurado, permite se transformar na alma mater da indústria cinematográfica: fábrica de sonhos, reflexões, questionamentos, alumbramentos, ilusões e incontáveis momentos de “eureka”, há 121 anos. Estrangeiros de origem, de alma, de convicções e estilos de vida foi o que Meryl Streep desejou enfatizar, pontuando seu recado com exemplos de carne e osso.
Como Sarah Paulson, 42 anos, que nasceu na Flórida e, depois que os pais se divorciaram, foi viver apenas com a mãe em Nova York. Vitoriosa sobre um câncer de pele (melanoma), Sarah vem a se somar à crescente lista de mulheres que não fazem segredo sobre o fato de se relacionar com outra mulher: desde 2015 namora com a atriz Holland Taylor, de 73 anos. Sarah ganhou este ano o Globo de Ouro como Melhor Atriz de Minissérie por seu papel como Marcia Clark, em The People v. O.J. Simpson: American Crime Story. Antes que eu me esqueça, Sarah usava um deslumbrante Marc Jacobs dourado.
Em seguida, citou Sarah Jessica Parker – por si mesma um dos ícones fashion mais acariciados por estilistas que adorariam ver suas assinaturas nos tapetes vermelhos de Hollywood. Sarah tem ascendência tão mixada que é difícil não se perder nas encruzilhadas do seu mapa genético, com raízes em judeus do Leste Europeu (por parte de pai), alemã (do lado materno) e, o mais curioso de tudo: Sarah descende de Esther Elwell, uma das acusadas durante os julgamentos ocorridos em Salém, Massachusetts, nos quais mulheres eram aleatoriamente levadas ao escrutínio de seus pares (homens) e, se consideradas culpadas por bruxaria (quase sempre), eram queimadas na fogueira.
Sarah Jessica Parker, uma das indicadas ao Globo de Ouro 2017 como Melhor Atriz de Série (Comédia), por Divórcio, é também a atriz/produtora que levou à televisão o arrazoado de reivindicações e conflitos que marcaram a agenda das mulheres no final da década de 1990, com a série Sex and the City (De 1998 a 2004 transmitida pela HBO). Para a cerimônia, ela envergava um vestido “de noiva” assinado por Vera Wang que, segundo os homens de má vontade, não lhe caiu nada bem. De fato, a saia bojuda fazia estranha conexão com a parte de cima: um corpete com decote vertiginoso e mangas compridas e bufantes, que se ajustavam ao pulso, mas que pareciam ter sido arrancadas à força das alças que as sustentavam. Pensando bem, não poderia haver vestido mais emblemático para esta noite em que as rainhas resolveram falar forte. Complementando seu visual desconstruído, SJP optou por tranças suspensas que lembravam o famoso penteado da Princesa Leia, personagem de Star Wars inesquecivelmente trazida à vida real pela realíssima Carrie Fisher, falecida subitamente aos 60 anos no dia 27 de dezembro de 2016. “Foi uma homenagem inconsciente”, declarou Sarah Jessica Parker. Consciente, no entanto, foi uma das frase mais tocantes do discurso proferido por Meryl Streep, referindo-se a Carrie Fisher – a eterna princesa sacrificada à fogueira das vaidades da meca cinematográfica: “Como a minha querida amiga, a recém-falecida Princesa Leia, disse uma vez para mim, peguem seus corações despedaçados e transformem em arte.”