Três meses após anunciar investimentos de R$ 1,2 bilhão em filmes e outras obras audiovisuais por meio do Programa Audiovisual Gera Futuro, que distribuirá verbas do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), a Agência Nacional de Cinema (Ancine) enfrenta uma ameaça de paralisação na aplicação da verba.
Responsável por auditar anualmente as contas da Ancine, o Tribunal de Contas da União (TCU) acusa a agência reguladora de, em anos anteriores, ter aplicado, sem nenhum controle, mais de R$ 1 bilhão com a mesma finalidade.
Por isso, iniciou procedimento administrativo para analisar se a Ancine terá condições de controlar o investimento de 2018 que, para o TCU, pode ter caráter eleitoreiro. Se considerar a agência incapaz de controlar esses gastos, nas próximas semanas poderá suspendê-los. A medida paralisaria cerca de 50 produções em andamento e afetaria outras 250 que poderiam começar a ser desenvolvidas.
Uma das principais atribuições da Ancine é administrar o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Seu valor em 2018, R$ 1,2 bilhão, é recorde, alcançado porque parte da verba de 2017 foi congelada e somou aos valores deste ano. Esse dinheiro é investido na produção de diversos produtos audiovisuais, principalmente filmes, séries e programas de TV. Também é aplicado na construção e reforma de salas de cinema.
Quem recebe os investimentos precisa prestar contas da sua aplicação, e cabe à Ancine cobrar e analisar essas contas. Ao analisar as contas de 2016 da Ancine, uma auditoria concluída em 2017 pelo ministro do TCU Marcos Bemquerer Costa identificou 20 problemas que deveriam ser corrigidos. Os mais graves eram demoras excessivas para analisar projetos e processos externos e para resolver questões internas. Apesar das ressalvas, o TCU não interveio na administração da Ancine.
O TCU já concluiu a análise das contas de 2017 da Ancine. As ressalvas permaneceram. Desta vez, no entanto, a Secretaria de Controle Externo no Rio de Janeiro (órgão que representa o TCU no Estado) propôs que as verbas do FSA fossem bloqueadas. Segundo a auditoria, entre 2008 e 2016, a Ancine distribuiu mais de R$ 1 bilhão do FSA a cerca de 1.500 projetos. Centenas foram concluídos, mas nenhum teve a prestação de contas analisada.
Segundo relato do ministro do TCU André Luís de Carvalho, em 2015 a agência instituiu uma metodologia de análise por amostragem - Ancine+Simples - que submete apenas 5% dos projetos ao detalhamento considerado adequado pelo tribunal. Com essa facilidade, em 2016 foram analisadas 118 prestações de contas de projetos fomentados com outras verbas da Ancine (que não do FSA) No início de 2017, havia 1.816 prestações aguardando análise, mas, ao longo do ano, só 175 foram submetidas a apreciação.
A Secretaria de Controle Externo no Rio propôs que todas as contas aprovadas com base nos critérios de 2015 fossem analisadas novamente. A Ancine argumenta que essa metodologia foi submetida e aprovada pela Controladoria Geral da União e pelo próprio TCU.
O TCU relatou condutas que considerou suspeitas, como pagamentos feitos por uma empresa a outra que tem os mesmos sócios e endereço idêntico. Também criticou o momento em que o investimento para 2018 foi anunciado.
"Chama a atenção o fato de o lançamento do Programa Audiovisual Gera Futuro, com previsão de aporte de R$ 1,2 bilhão ainda este ano, (...) ocorrer em pleno ano eleitoral e, para perplexidade, em um cenário de grave crise fiscal que aflige o País, no qual carecem recursos para as funções de governo mais básicas, como a saúde, a educação e a segurança públicas. Tampouco se tem destinado recursos desta monta para (...) estratégias de segurança no Estado do Rio de Janeiro, ainda que na circunstância de intervenção da União", escreveu o ministro Carvalho, relator do caso, no despacho de 2 de maio em que dá sequência à investigação sobre a Ancine.
A Ancine já apresentou sua primeira resposta à essa análise do TCU. O órgão admitiu falhas no controle dos investimentos, mas alegou que já havia feito esse diagnóstico e que trabalha para melhorar o sistema de prestação de contas. A principal iniciativa é uma parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para adaptar às especificidades da Ancine um sistema eletrônico já utilizado pelo banco para controlar os financiamentos.
A Ancine pede que o pedido de bloqueio das contas seja substituído por um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), documento usualmente firmado para estabelecer medidas a serem cumpridas em prazo determinado, sob pena de adoção de medidas mais graves. Neste caso, a Ancine se comprometeria a melhorar o controle das prestações de contas. Se não cumprisse o plano no prazo a ser definido, ocorreria o bloqueio das contas do FSA.
Nos próximos dias, a Ancine deve apresentar mais uma resposta, que será analisada pela Secretaria de Controle Externo do TCU no Rio de Janeiro. Caso aceite as alegações da Ancine, a secretaria pode, por iniciativa própria, retirar o pedido de bloqueio das contas do FSA.
Se não considerá-las suficientes, a unidade estadual do TCU manterá o pedido de bloqueio, que voltará à análise do ministro Carvalho. Caberá a ele, como relator do processo, decidir se o FSA será ou não bloqueado. A decisão tem efeito imediato, embora possa ser cassada judicialmente.
As verbas do FSA permaneceriam bloqueadas até que terminassem de ser analisadas todas as prestações de contas pendentes. Isso poderia demorar dois anos, segundo estimam técnicos do setor. Nesse período, ficaria bloqueada a verba de R$ 1,2 bilhão destinada a projetos que devem começar em 2018 e cerca de R$ 1 bilhão em produções ou iniciativas (a reforma de salas, por exemplo) já em andamento. Entre os projetos já iniciados, estão cerca de 50 filmes, séries ou programas de TV. Calculando que cada produção empregue cerca de 100 pessoas, o número de desempregados deve chegar a 5 mil, em um cálculo hipotético.
A Ancine informou, por meio de nota, que representantes da agência e do Ministério da Cultura já se reuniram com ministros do TCU "para explicar que medidas para sanar as inconsistências já estão sendo tomadas". Segundo o texto, elas podem ser executadas sem prejuízo "da finalização ou desenvolvimento de novos projetos audiovisuais".
"O ideal é pactuar com o TCU um plano de transição para as novas regras sem a interrupção dos trabalhos atuais e futuros. A própria Ancine já fez um diagnóstico que chegou a resultados muito próximos dos detectados pelo TCU. Foram identificados 20 pontos de risco e já foram implementadas, a partir de abril, ações que visam sanar os problemas", informa o texto.
Durante o período analisado pelo TCU, a agência foi presidida por Manoel Rangel (de 18 de dezembro de 2006 até 20 de maio de 2017) e por Debora Ivanov (daí até o fim de 2017). Desde que deixou a presidência, Rangel não tem mais nenhuma ligação com o órgão. Ele afirmou não ter conhecimento sobre a auditoria e não quis se manifestar.
Debora Ivanov permanece como diretora da Ancine, função que desempenha desde outubro de 2015. Seu mandato termina em outubro de 2019. Procurada pelo Estado, a diretora e ex-presidente não quis se manifestar. Recomendou que a reportagem consultasse a própria Ancine.
Segundo informações do site da Ancine, a metodologia Ancine+Simples, criticada pelo ministro do TCU André Luís de Carvalho, foi aprovada pelos órgãos federais de controle, inclusive o TCU. No site da agência, o Ancine+Simples é classificado como "um plano de ações para a qualificação da gestão do financiamento público do audiovisual". Segundo o texto, a metodologia permitiria "a redução dos prazos com aumento da produtividade" e "o aperfeiçoamento dos controles materiais e formais sobre as operações financeiras".
O site informa a existência de um cronograma de "superação do passivo de prestação de contas" e que todas as contas antigas serão analisadas até dezembro de 2019.