O cineasta Kleber Mendonça Filho lançou em suas redes sociais uma carta aberta, endereçada ao ministro da cultura, Sérgio Sá Leitão, se defendendo do imbróglio ao redor da captação dos recursos para a realização do filme O Som ao Redor. O MinC cobrou ao diretor a devolução da quantia de R$ 2,2 milhões, alegando que a produção descumpriu as normas do edital destinado para filmes de baixo orçamento ao ultrapassar o teto estabelecido de R$ 1,3 milhão. O Som ao Redor captou aproximadamente R$ 1,7 milhão, sendo R$ 410 mil obtidos por meio do Fundo de Cultura de Pernambuco (Funcultura). Segundo a Folha de São Paulo, A produtora do filme enviou para a Ancine (Agência Nacional do Cinema) um orçamento de R$ 1,49 milhão e, após vencer o edital, redimensionou seus custos para R$ 1,9 milhão.
Em sua carta, Kleber conta que recebeu o pedido enquanto estava no Rio Grande do Norte gravando seu próximo longa, Bacurau, em parceria com Juliano Dornelles. Segundo ele, após o fim das gravações, há duas semanas, houve tentativas de marcar um encontro com o ministro, seja por contato pessoal ou marcação em agenda oficial, mas sem sucesso. Ele julga a carta recebida como pioneira, pois "sugere uma punição inédita no Cinema Brasileiro e que nos pareceria mais adequada a produtores que não teriam sequer apresentado um produto finalizado, e isso após algum tempo de diálogo”, explica.
O cineasta continua afirmando que assume a posição de um cidadão que precisa se defender de acusações injustas, copiando literalmente os pontos do edital que discorrem sobre vedações e apontando que não há nada proibindo a captação fora da esfera nacional, inclusive relatando que devolveu cerca de R$ 271 mil para Petrobrás, justamente para não ultrapassar o limite estabelecido nesse nível. Assim, não haveria problemas em conseguir recursos na esfera estadual, com o Funcultura.
O advogado do diretor, Fabiano Machado da Rosa, afirmou em entrevista ao Jornal do Commercio que o próprio edital não se mostrava muito elucidativo sobre essa questão, levando então a uma consulta junto aos órgãos competentes. "O edital não é claro, motivo pelo qual foi feita uma consulta à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura sobre a possibilidade de captação de recursos na esfera estadual. Na resposta que recebemos, foi orientado que não haveria problema nessa complementação orçamentária para a execução do filme", elabora.
Segundo Kleber, as respostas da Secretaria do Audiovisual, que autorizam a captação extra, estão todas documentadas. "Nós nunca faríamos alteração de orçamento sem o acompanhamento das agências responsáveis, elas próprias regidas por regras internas duras. Pergunto ao senhor se houve comunicação entre o MinC e a Ancine para tentar esclarecer essa questão institucional que não deveria ser transformada numa punição inadequada para os produtores de um filme exemplar”, diz.
Outro ponto destacado em seu favor é o fato da Advocacia-Geral da União (AGU) ter reconhecido a entrega do filme em parecer, fazendo com que a devolução seja um “enriquecimento injustificado da União”. Ele explicita que outros filmes do mesmo edital também conseguiram captação fora do nível federal. A mudança das normas do edital em 2011, agora sim, vetando recursos nas esferas estaduais e municipais é mais uma questão levantada.
"Não houve "investigação" nem devido processo com a possibilidade de ampla defesa. Recebemos um e-mail com pedidos de informação que prestamos imediatamente. E, para nossa total surpresa, meses depois um e-mail com comunicado de uma decisão administrativa absurda seguida de um boleto de multa em anexo", elucida Fabiano.
Kleber também ressalta a impossibilidade de se defender na carta. "Preciso ainda registrar que a carta recebida do vosso MinC veio como uma surpresa, especialmente por não termos tido a chance de dialogar com o Ministério. Como artista, o mínimo que espero de um Ministério como o da Cultura é o diálogo, uma troca de informações numa questão importante para todas as partes. Sou um artista brasileiro num momento extremamente difícil no nosso país, onde têm sido frequentes acusações que tentam criminalizar toda a classe artística, do teatro à literatura, do Cinema à música e às artes plásticas", afirma.
Mesmo avaliando como absurda a decisão do Ministério, a defesa do cineasta prefere descartar perseguição política ao diretor no momento. "Por ora, apesar de nossa perplexidade frente a toda a atipicidade e rapidez desse caso, preferimos não acreditar no absurdo da hipótese de se tratar de um caso de perseguição política. Diante dos fatos e provas que nos isentam completamente, ainda confiando no Ministério da Cultura e no senso democrático de seus funcionários, temos a certeza da anulação dessa multa descabida que não há de abalar nossa reputacão de honestidade, seriedade e compromisso com a cultura do Brasil”, declara. Ao lançar Aquarius, sua última produção, no Festival de Cannes em 2016, Kleber e sua equipe realizaram protestos contra o governo Temer no tapete vermelho do evento.
O diretor ainda questiona os impactos que a punição proposta podem impactar a produção cultural nacional, uma vez que gera o "sentimento de vulnerabilidade incompatível com um pensamento democrático, a partir de um incidente como este". A carta é encerrada com um panorama, tanto da situação da produção mais descentralizada do eixo sudeste, muito por causa das cotas nos editais, assim como preocupações para o futuro, a exemplo da participação maior de negros, mulheres e indígenas na realização das obras.
"Para terminar, O Som ao Redor retrata uma realidade conhecida no Brasil. Trabalhadores da cultura enfrentam as desigualdades regionais, a falta de apoio, a falta de um espaço de visibilidade para as suas obras, os entraves de uma burocracia paralisante, os (mau)humores do mercado cultural, a disputa "Davi e Golias" com produções internacionais milionárias", diz em seus últimos parágrafos. Para isso, senhor Ministro, seguiremos dignos. Foi por isso que filmei O Som ao Redor, Aquarius e agora Bacurau, com personagens que interagem com o Brasil, mas o fazem entendendo o quanto são dignos. Grato pela atenção", conclui Kleber.
O Ministério da Cultura foi procurado, mas nenhuma resposta foi obtida até o fechamento desta edição.