Melodrama sobre o Recife sobrenatural, Amorteamo arrebenta na estreia

Ao lado de Letícia Sabatella, pernambucana Gheuza Sena brilha no primeiro capítulo
Bruno Albertim
Publicado em 09/05/2015 às 14:26
Foto: Foto: André Nery/JC Imagem


Amorteamo não é, como já explicaram seus realizadores, a concretização da ideia original de adaptar Assombrações do Recife Velho. Mas a estreia brilhante da série na última sexta, na Globo, não nega o DNA: é como se Tim Burton se embrigasse com os contos-crônicas de Gilberto Freyre sobre as lendas urbanas da cidade para compor esse melodrama em que mortos integram triângulos amorosos numa Recife fantástica do começo do século 20.

Narradora que desconhece limites rígidos entre cinema e TV, a pernambucana Flavia Lacerda exibe sua direção deliciosamente inclassificável. É uma profissional que dirige com o zelo de uma bordadeira: sabe que cada ponto ínfimo da trama é fundamental para o tecido final. 

O cuidado salta aos sentidos em cada linha desssa colcha de retalhos, um deleite em referências cinematográficas. O casarão da família de senhores de engenho nos lembra a propriedade rural de Jango Livre, de Tarantino. A estética de quadrinhos de western é elegantemente temperada com a fotografia expressionista de André Horta. Os cabelos e figurinos têm a teatralidade de Burton. É tudo, lindamente, ao mesmo tempo-agora.

Recife está presente em cada fotograma. Até quando não aparece. Filho do senhor de engenho apaixonado pela filha da criada da casa, o personagem do anguloso Jonny Massaro é uma espécie de Augusto dos Anjos - boemio, agustiado e libertário vagando pelas pontes velhas da cidade.

Logo após a primeira cena - quando o personagem de Daniel de Oliveira é assinando na felicididade do gozo sobre o corpo da amante Letícia Sabatella pelo marido traído, o patriarca controverso como todos os homens da cana de açúcar nordestina defendido por Jackson Antunes - , a câmera extrapola os limites do casarão para mostrar a Rua da Aurora quente, úmida e sepucral da espécie de versão tropical de Paris que o Recife foi no começo do século 20.  De início, vemos a cidade que a sanha especulativa e imobiliária nos fez perder ao longo dos últimos cem anos.

 

A dramaturgia é clara no aporte de cada um dos autores. O timming veloz de Cláudio Paiva para a comédia de comportamento dá agilidade de uma conversa de rua à densidade de Newton Moreno, autor que como nenhum outro bebe nas fontes freyreanas, dentre outros, para processar a prosódia verbal e de subjetividades de um Nordeste longamente talhado nas contradições da civilização da cana. O humor barroco nordestino de Moreno também está nesse caldeirão.

Como poucos produtos recentes da TV, a série conjuga sofisticação narrativa com a leveza pop exigida pelo principal de meio de acesso da população brasileira ao audio-visual. Tem carisma e até ótimas frases de pára-choques, como a sentença do desencarnado sobre a raiva do marido diante da mulher que chora aos pés do túmulo do amante: "A morte mata o amante, mas não mata o amor". 

O elenco é brilhante. Mas de todos os personagens, um se destaca: mais que cenário, o Capibaribe, esse cão sem plumas desde a nascente, é um agente ora mais passivo, como testemunha, ora determinante. Espesso e caudaloso, suas águas interferem nos destinos.  É depois de uma queda inesperada no rio que os jovens amantes vividos por Johnny e Ariane Botelho, sujos na lama dos mangues, confirmam o inevitável trágico do amor.

Embora haja, claro, dois trios de protagonistas, não podemos dizer que há um elenco necessariamente secundário. Do grupo de seis pernambucanos em cena, nenhum deles é apenas parte do cenário, mas elementos determinantes na narrtiva. Lívia Falcão virgula a trama com sua comicidade laminosa a cada vez que abre a boca como uma das protistutas do bordel comandado pela magnética Maria Luisa Mendonça.

Outro dado sociólogo: como o Chanteclair que ainda espera pela reforma que se arrasta há anos no Recife Antigo, essas grandes casas de orgia estão lá bem representadas como a espécie de câmara setorial onde os patriarcas do Nordeste encontravam espaço privilegiado e privado para, não raro, decidir rumos da vida pública e econômica de Pernambuco.

A música dessa usina sonora que é Juliano Hollanda é mais que atmosfera. Cheia de texturas e com apelo pop, compõe, literalmente, partes da história. Linda a cena em que, em vez de falar, Letícia Sabatella dá conta do texto cantando. O preparo preciso da fonética e da prosódia dos atores feito, também, por Livia Falcão, dá uniformidade ao elenco e deixa os sotaques com o naturalismo do Recife que encontramos nas esquinas ou nas boas produções recentes do cinema pernambucano. 

Guardem as pedras: aqui, a Rede Globo esqueceu na gaveta aquela fala esquisita com a qual costumava amarrar a boca de seus personagens quando a história se passava num lugar jamais visto que a emissora entendia como Nordeste.

Do corpo de atores locais, Gheuza Sena está afiada como foice de cortar cana. Em parceria com Adélio Lima (o Gonzagão do filme de Bruno Silveira), compõe magneticamente a criada que é pura evocação dos sobrados e mocambos dos quais ainda demoraremos muito tempo para nos livrar.  Como no coro do teatro grego, sua personagem pontua e indica o inevitável trágico dos outros. 

Amorteamo é TV, cinema e teatro ao mesmo tempo. Os cortes irritantemente frenéticos com várias narrativas paralelas das novelas são preteridos para planos mais longos, onde cenários e personagens respiram o texto com grandeza. Corpos e expressões dos atores estão livres da marcação pretensamente naturalista dos folhetins eletrônicos e se ampliam, exibindo o background teatral de seus interprétes.

No mundo multidiscplinar e de fronteiras diluídas, a série dirigida por Flavia Lacerca ajuda a borrar essas barreiras dispensáveis. Em poucos momentos da TV recente brasileira, requinte foi conjugado tão eficientemente com popularidade ­- sem pedantismos ou populismos. 

A nova série da emissora carioca marcou, segundo dados preliminares do Ibope 13,7 pontos de média de audiência ( A Record ficou em segundo, com 7,3 pontos de média ). Enquanto não é editada para o cinema - o que inevitavelmente deve acontecer, Amorteamo nos dá um ótimo motivo para reunir os amigos em casa nas noites de sextas-feiras com seu Recife surreal e plausível em plasmas e secreções. 

Veja as fotos dos atores assistindo à estreia da produção no restaurante Club Bardot:

Foto: André Nery/JC Imagem
Adelio Lima e as filhas Alana e Elydha - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
A atriz Sonia Cristnak, Adélio e a cantora Isadora Melo - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
Sônia e Isadora, sua filha - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
Lucas, Maitê e Paula Ardanza - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
Nena Carvalho e o bailarino cubano Marcos Livan - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
Mesas coletivas no Club Bardot - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
Atenção na hora da estreia - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
O músico pernambucano Zé Manoel - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
Juliano Holanha, Mery Lemos, Gheuza Sena e Luiz Cao - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
Club Bardot recebeu os envolvidos na produção - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
Adelio Lima e as esposa, Silvaneide - Foto: André Nery/JC Imagem
Foto: André Nery/JC Imagem
- Foto: André Nery/JC Imagem
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newton moreno Flavia Lacerda Gheuza Sena Amorteamo
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