Livro, nome do romance do escritor português José Luís Peixoto, parece pretensioso e absoluto. Não à toa, a própria obra desconfia do seu título, diz que ele “sugere perigosamente o livro”. Lançada agora no Brasil pela Companhia da Letras, a narrativa passa longe disso, justamente porque foge da ilusão que parece propor. É, sim, uma narrativa cuidadosa, histórica, metaliterária, meticulosa e envolvente, mas, paradoxalmente, também é uma crítica do próprio papel do romance, da possibilidade de a narrativa explicar o mundo. E, se não quer criar “o” livro, o autor também não busca fazer apenas “um” livro, mais um relato convencional para ocupar as prateleiras.
Ressaltar isso é importante, até porque a obra lida com o conflito entre ser definitiva e ser apenas mais uma. O tema já está expresso na epígrafe da obra, uma citação de Julio Cortázar: “Um livro a mais é um livro a menos; uma aproximação ao último que espera no ápice, já perfeito”. Livro é a história de um vilarejo em Portugal durante a ditadura de Salazar, abordando a migração de parte dos seus habitantes para a França – entre 1964 e 1970, 1,5 milhão de portugueses foram para o país –, sem deixar de tratar do estado da literatura.
A obra começa com o relato do abandono de um filho pela mãe, deixado para ser criado por um amigo dela. É nesse instante de despedida inconsciente que Idílio, um dos protagonistas da trama, recebe um livro de presente dela, sem saber o verdadeiro motivo disso. Na pequena vila onde mora, o menino fica aos cuidados do pedreiro Josué.
O retrato delicado de cada um dos personagens desse local gera um enredo relativamente comum, mas que se transforma num relato envolvente da tentativa de Idílio de encontrar a sua namorada, Adelaide, mandada para a França pela tia.
Peixoto faz de Livro uma narrativa de ritmo lento, calmo. As frases parecem respirar com demora, contemplativas, certas de seu papel no enredo e vivas em sua paciência. O escritor português constrói uma obra que não é hábil apenas em revelar com sutileza as razões dos seus acontecimentos, mas também em se fazer ritmada na mente dos leitores. É uma reprodução adequada da velocidade mansa da memória, como Proust fez com maestria, mas que não vai atrás do passado para dissecá-lo.
O tempo de Peixoto é o da saudade, mas também é o da vida pacata das pequenas cidades de Portugal e do cotidiano dos imigrantes na França. Ainda assim, no fim da obra, há uma reviravolta impressionante, que transforma Livro – já uma bela narrativa de um tempo histórico – em um relato irônico e desconfiado, que passa, também, a falar de si mesmo.
O romance explica bem esse momento, com um grande sarcasmo sobre si mesmo: “A segunda parte consiste num desequilíbrio estrutural injustificado, experimentalismo fora de tempo. É nesse ponto que o romance atinge níveis intoleráveis de arrogância. Para lá das constantes referências a autores que ele, nitidamente, desconhece, num exercício fútil de name-drop, esperteza de google, o clímax de insensatez é alcançado numa espécie de autocrítica que, fazendo parte do romance, se refere ao próprio romance. A autorreferencialidade e o pós-modernismo têm as costas largas”.
Assim, a obra não fornece a aposta em uma solução da escrita, da arte, da história, do mundo, de nada – ela não é o grande romance moderno resgatado. Não é uma obra total, mas não é também uma negação das possibilidades narrativas. Da forma que é possível, Peixoto faz de Livro, ao mesmo tempo, crença na literatura e desconfiança dela. Ainda que parece paradoxal, um testemunho de que é preciso crer para duvidar.
Leia a matéria completa na edição de domingo (8/4) do Jornal do Commercio.