A América Latina imaginada por Gabriel García Márquez

Em Cem anos de solidão, se faz presente uma visão do continente, que foi propagada para o mundo todo
Do JC Online
Publicado em 27/04/2014 às 5:34
Em Cem anos de solidão, se faz presente uma visão do continente, que foi propagada para o mundo todo Foto: NE10


Para se localizar na trama de Cem anos de solidão, é quase obrigatório elaborar, aos poucos, a árvore genealógica da família Buendía, na medida em que se avança na leitura do romance mais popular de Gabriel García Márquez, falecido no último dia 17. De certa forma, a Macondo da obra não é uma cidade inserida em uma geografia ou uma região real: a genealogia é necessária, porque Macondo existe dentro de um tempo. Assim, do mesmo modo que é preciso traçar a sequência de herdeiros e descendentes dos Buendías para se localizar (e localizar Macondo) em Cem anos de solidão, talvez seja necessário o mesmo para entender a posição da obra do autor colombiano na literatura latino-americana.

O escritor foi o mais popular entre os autores da sua geração, ao lado de nomes como Mário Vargas Llosa e Carlos Fuentes. Macondo, esse lugar sem lugar, essa América Latina condensada em uma vila, se tornou, com o sucesso de Gabo, a própria metáfora do continente na obra do colombiano. “Ele criou uma mitologia com o que escreveu. Foi o grande autor que colocou a América Latina e a sua literatura em um nível mundial. O ponto central disso é esse símbolo, Macondo”, aponta o escritor e crítico literário Rafael Eduardo Gutiérrez, que nasceu na Colômbia e reside no Brasil.

O jornalista e doutor em teoria literária Schneider Carpeggiani recupera a origem da cidade fictícia para falar de como ela representa o continente. A primeira aparição é num conto, como nome do hotel que vai hospedar um padre. “Nesses primeiros textos do escritor, mesmo quando os locais não eram chamados de Macondo, eles já eram Macondo: lugares perdidos, encerrados em si mesmo, que justamente por essa localização possibilitavam que tudo acontecesse. Se você se encontra isolado, pode fazer o que quiser”, explica. “E nesse isolamento, esses vilarejos sem nome acabavam sempre atraindo forasteiros (e o que é um hotel, para além de um lugar para forasteiros?).”

A Macondo de Gabriel García Márquez tem essa vida pregressa antes de Cem anos de solidão, mas é no livro que assume sua faceta mais simbólica sobre a América Latina. “Uma das possíveis significações para a palavra Macondo é ‘banana’, e, no romance, a cidade entra em decadência justamente pela chegada da empresa bananeira. Se Macondo é ‘banana’ e é destruída justamente pela companhia bananeira, temos uma cobra engolindo o próprio rabo – ou seja uma metáfora perfeita para pensarmos a modernidade. Macondo é tão absurda quando a própria história conhecida do continente de 500 anos para cá: um lugar para forasteiros (o hotel, a banana...), onde todo tipo de absurdo pode acontecer”, aponta o crítico Schneider Carpeggiani.

O pesquisador Rafael Eduardo Gutiérrez também destaca a ideia de realismo mágico na obra do autor. Para ele, o autor colombiano fez mais do que colocar no que via elementos fantásticos: García Márquez defendia que a nossa própria vida tinha esse caráter. O peruano Mario Vargas Llosa afirma que Cem anos de solidão está “profundamente ancorado na realidade da América Latina, dela se nutre e, transfigurando-a, acaba refletindo-a de maneira certeira e implacável”. A magia, assim, não é uma fuga ou um esconderijo, mas sim uma forma de fidelidade.

Por sua vez, Schneider vê que os temas e símbolos de Macondo podem ser vistos nos restante da sua obra. “Em García Márquez tudo é Macondo, porque tudo é América Latina. Os escritores podem até disfarçar, mas no fundo todo mundo só conta a mesma história a vida toda”, afirma.

OUTRAS MACONDOS
Antes da cidade inventada mais famosa da literatura latino-americana, já existia uma tradição de lugares imaginários entre os autores daqui. O uruguaio Juan Carlos Onetti, por exemplo, criou Santa María para o seu universo literário, principalmente no livro Vida breve. “Santa Maria é uma cidade que precisa se alargar, está cheia de tensão emocional e concreta e por isso acabou acompanhando o autor a vida inteira – assim como como ocorreu com García Márquez. É uma cidade que vira uma obra”, comenta Schneider. Em sua Santa Fé, o argentino Juan José Saer transforma também em lugar fictício a província em que nasceu.

Da mesma geração de Onetti, o mexicano Juan Rulfo – escritor fundamental para García Márquez – criou, para o crítico pernambucano, o exemplar mais “sofisticado” de cidade fictícia. Sua Comala é uma espécie de lugar fantasma para onde o protagonista de Pedro Páramo se dirige. “Quando o livro abre com a frase ‘Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo’, Rulfo instaura toda a incerteza que implica em ser latino-americano: o que somos, quando começamos mesmo, onde estamos e quem é nosso pai de verdade?”, declara Schneider. “Pedro Páramo é o grande livro de história da América Latina, porque é um livro sobre fantasmas e esse é um continente muito assombrado.”

Rafael ressalta que, além desses autores, Gabo se inspira muito na tradição de Faulkner e o território da pequena Yoknapatawpha. “Ele realmente dialoga com essa tradição, mas nenhum desses autores conseguiu o impacto dele, ninguém disseminou no mundo um símbolo como Macondo”, destaca.

Essas cidades, Schneider destaca, são também uma forma de criar o próprio universo literário. “Todo escritor precisa criar alguma coisa para poder dizer o que precisa. Alguns autores criam pessoas, como no caso de Dom Casmurro, ou criam uma linguagem, como no caso de Guimarães Rosa. Outros criam cidades e ao criarem cidades, criam toda uma literatura”, define.

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