Alceu Valença reúne seus poemas em livro

O cantor pernambucano repassa sua trajetória musical, literária e pessoal no livro 'O poeta da madrugada'
Diogo Guedes
Publicado em 26/04/2015 às 6:00
O cantor pernambucano repassa sua trajetória musical, literária e pessoal no livro 'O poeta da madrugada' Foto: Yanê Montenegro/Divulgação


Alceu Valença era um jovem cabeludo e barbudo, em meados dos anos 1980, quando encontrou um dos seus ídolos literários andando pelo Rio de Janeiro: o poeta Carlos Drummond de Andrade. Aproximou-se dele, claro, e o cumprimentou dizendo: “Que honra encontrar o poeta Drummond na Rua Vinicius de Moraes!”. O modernista não deu a mínima. Simplesmente fez um muxoxo e apressou o passo, esquivando-se do jovem e dos seus amigos, também cabeludos e barbudos.

O desastrado encontro com o ídolo não apagou a marca da sua influência na obra de Alceu. Quando largou a advocacia, em 1969, para se dedicar à música, o compositor e cantor de São Bento do Una já escrevia versos há um bom tempo. Alguns iam virando música, outros mantiveram o ritmo próprio das páginas impressas e ficaram guardados até pouco tempo. Agora, incentivado pela mulher Yanê Montenegro, Alceu lança o livro O poeta da madrugada, pela editora portuguesa Chiado, com versos e letras de música que mostram sua trajetória poética e pessoal.

Com prefácio do escritor angolano José Eduardo Agualusa, o livro revela a força poética dos textos de Alceu, mesmo quando eles já foram vertidos em música. Ao mesmo tempo, o ritmo invade a poesia: é impossível não imaginar a cadência da voz marcada do cantor naqueles textos até então inéditos. Alceu leva o leitor pelas geografias e pelos momentos marcantes da sua vida, de São Bento do Una a Paris e da ditadura, em seu “medo que amordaçava o Brasil”, ao amor e ao tempo.

É um encontro de Alceu com dois velhos companheiros: a literatura e o tempo. Não por acaso, antes mesmo de O poeta da madrugada ganhar forma, havia composto um poema chamado São Bento – Paris. “Era algo como um inventário do jovem Alceu antes do sucesso como artista, que chegaria para mim somente a partir de 1980. Parte deste poema está presente entre os escritos do livro. Posso dizer que ele influenciou, inclusive, a feitura do roteiro do meu filme A luneta do tempo, no sentido de voltar a lugares e momentos”, conta.

Mais do que as lembranças, é o embate com o tempo que move Alceu. “A arte possui esta prerrogativa de transportar-nos além do tempo e do espaço, da mesmice cotidiana. Além disso, escrevo para matar o tédio, para enganar o tempo, que chamo de tríplice: vivemos presente, passado e futuro, juntos na mesma embolada, e a arte é um dos melhores instrumentos de que dispomos para lidar com isso”, define o poeta-músico.

DOM QUIXOTE LIBERTO
Uma das melhores definições do inquieto e afiado cantor vem pelas suas próprias palavras, na música Agalopado, do CD Espelho cristalino (1977). Como outras das mais belas letras de Alceu, ela está no livro e sintetiza bem o papel de Alceu de ser, ao longo da vida, um “porta-voz da incoerência” ou uma espécie “Dom Quixote liberto de Cervantes”. Da mesma forma que nas suas composições, a métrica popular aparece nos poemas ao lado da erudição, e os textos reflexivos estão juntos das canções vorazes que todo mundo conhece.

“A literatura e a referência a grandes autores sempre estiveram presente em minhas músicas. Posso mencionar Ai de ti Copacabana, que cita uma famosa crônica de Rubem Braga; Loa de Lisboa, que cita Fernando Pessoa; ou Vou danado pra Catende, com versos de Ascenso Ferreira, entre muitas outras”, aponta Alceu, que ainda fala de João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e Mário Quintana ao longo da obra.

Outra faixa que fez citando Rubem Braga, Na primeira manhã – e que refere-se a um “conde falando ao passarinho”, imagem de uma crônica do autor capixaba – rendeu outro encontro literário. “Através de um sobrinho dele, fiquei sabendo que Rubem se sentira honrado com a referência e resolvi telefonar para ele. Fiz alusão a um Valença de Pesqueira, que ele cita como valente soldado no livro Crônicas da Guerra na Itália, mas ele sequer se lembrava de meu suposto parente heroico”, revela o músico.

Se as composições contam com referências literárias, os poemas estão contaminados de ritmos. “A musicalidade é inerente ao meu processo criativo. Isso, provavelmente, também tem a ver com a minha formação, com os cegos de feira, os emboladores, os versejadores que a cultura mourisca do Agreste e do Sertão traz consigo e que foram uma verdadeira escola para mim. Desde garoto, aprendi a lidar com o universo dos decassílabos, das sextilhas e redondilhas. Sempre estou à procura do ritmo em minhas criações”, explica o autor.

Até o filme A luneta do tempo, que estreia em maio no CinePE, sofre dessa influência – Alceu diz que cismou que os cortes entre as cenas deveriam obedecer a um certo ritmo. Apesar de preferir a musicalidade dos versos, ele conta que já havia escrito uma obra em prosa, já completa. O volume, intitulado como Inacreditáveis histórias verdadeiras, seria “uma reunião de crônicas autobiográficas”, mas terminou perdendo-se quando esqueceu um computador em um táxi.

Escritor da insônia, Alceu não sabe se vai preparar outras obras. Por enquanto, já lançou O poeta da madrugada, em Lisboa e em São Paulo, quando passou três horas dando autógrafos. Por aqui, ainda não há previsão de evento – uma das ideias é esperar a Fliporto, em novembro. “Se há prazer em escrever, há prazer em publicar. E também em autografar, encontrar o público em noites de lançamento. O problema é que escrever e autografar me dão uma dor arretada nas costas. (Risos) Mas a arte e o público merecem qualquer sacrifício. Além do mais, eu nasci para a arte e vivo para a poesia”, comemora o músico, mais poeta do que nunca.

TAGS
Alceu Valença Poesia
Veja também
últimas
Mais Lidas
Webstory