Há sempre algo oculto em uma história – muitas vezes, justamente o que é essencial nela. Para o escritor e cineasta pernambucano Fernando Monteiro, a literatura parece interessar justamente por esse seu caráter reticente, que revela o que todos parecem esconder. Nos seus livros – em prosa ou em versos –, ele se mostra capaz de ir além das névoas dos fatos e, ao mesmo tempo, de apreciar toda a indefinição que os cerca.
Nesta semana, a editora Cesárea relançou em formato digital mais um dos livros fundamentais do autor, A cabeça no fundo do entulho. Publicado originalmente em 1999 pela Record, o romance vencedor do Prêmio Bravo! de Literatura é uma narrativa brilhante, repleta de ironia, sensibilidade e humor.
São três histórias independentes que compõem o romance. Logo na primeira, o leitor acompanha um advogado que vai a Roma para falar com uma possível cliente, que herdou por aqui uma valiosa, ainda que discreta, coleção de arte. O espólio, no entanto, vem com um porém: as obras não podem ser vendidas e a herdeira não se pode desfazer delas sem subterfúgios.
Átila, o personagem-narrador, é um homem culto, que tanta ver em Roma mais do que o clichê dos turistas e das ruínas. Na verdade, nesse gesto de entender o mundo além da sua própria vulgaridade explícita é que está a pulsão de A cabeça no fundo do entulho – obra que reserva espaço para belos momentos e os coloca ao lado de passagens destrutivas e hilárias.
O retrato da capital italiana é um capítulo a parte. É uma bela homenagem à cidade, uma declaração de amor que dilacera os seus clichês para renovar o valor daquele espaço. “Roma parece Roma – e é... mas também é outra cidade”, afirma Átila, sobre o local que é uma “moça (...) que se disfarça de velha quase morta”.
As viagens são outro alvo dessa primeira novela, que tem também trama quase policial escondida por trás do enredo dos quadros e até um enlace amoroso (Átila afirma, como um canastrão erudito, que todos nós “afundamos em dúvidas e afundamos em mulheres”). O personagem também comenta que o turista é alguém que vê coisas em excesso “entre o café da manhã, o almoço e o jantar – que muitos não apreciam, de puro cansaço, pensando nas suas casas, num cão que o vizinho ficou de alimentar, na mordida do imposto de renda e no fracasso da viagem muito tardia”.
Se a ironia se dirige para a vulgaridade turística em Roma, não pense o leitor que o provincianismo recifense escapa da prosa afiada de Fernando. Logo na trama seguinte, “Viva o Atlântico!”, ele fala da visita de um escritor espanhol – Camilo Cela, que seria nomeado Prêmio Nobel da Literatura anos depois – ao Recife. A obsessão dos intelectuais por Gilberto Freyre rende passagens deliciosas. “Existe (e não poderia deixar de existir) um artigo de Gilberto Freyre sobre essa noite recifense”, escreve o autor, que ainda brinca com o repertório vasto do autor de Casa-grande & senzala – diz que “havia poucas coisas que Gilberto Freyre não soubesse (quando não sabia, inventava)”.
A partir de uma suposta passagem de Marcel Proust pela cidade e do curioso trajeto de Camilo Celo em uma noite de chuva, o autor faz transparecer que, em muitos momentos, a literatura deixou de abordar o que é o essencial – a vida, o encontro com as casualidades – e virou um jogo de falsa erudição entre conhecidos. Como sempre, por trás das ironias, há uma tacada poderosa.
A história final, que dá título ao volume, é uma espécie de pastiche das narrativas de espionagem. Entre a Inglaterra e a Bulgária, Fernando cria um personagem obcecado em descobrir o que houve em uma missão do serviço secreto britânico. Seus temores e a versão oficial nunca são ditos explicitamente: trata-se de uma amostra labiríntica de um jogo de segredos quase sem sentido, por trás de manuais, regras, gírias da profissão e eufemismos.
Há brincadeiras com isso, claro: o narrador chega a falar a seguinte frase: “Siga o instinto - se o instinto conferir com o Manual”. O que é certeiro, no entanto, é o retrato da aparente inutilidade daquilo tudo. “Os que estavam mortos não sofreriam, mas os vivos começariam a se perguntar por que não estavam mortos, porque teriam que perceber, vivos, que o jogo do jogo apostara suas vidas naquele nada não só repentino”, imagina o personagem.
Na três novelas do volume, quase completamente independentes (conectadas, talvez pela figura de um “comentador” dos textos) são os entulhos, os pedaços desprezados e escondidos de pequenos relatos, que marcam. É revirando os restos – bem mais interessantes, aqui, que as ruínas turísticas de Roma – que se encontra as boas e reais experiências. A literatura de Fernando Monteiro é um convite a não se perder no óbvio, e é por isso que é tão necessária mais de uma década depois de ser feita.
Confira aqui um trecho do romance.