O escritor Ronaldo Correia de Brito tinha uma tradição particular. Mesmo quando comentava que estava preparando um novo livro, nunca anunciava o título antes. Falar o nome da obra é a etapa final, a que torna a narrativa num romance pronto, que não pertence mais a seu autor. Com o seu próximo livro, no entanto, o autor quebrou o próprio método: revelou em janeiro que vai lançar em maio o seu terceiro romance, Dora Sem Véu, mais uma vez pela Alfaguara.
É a primeira narrativa longa de Ronaldo desde Estive Lá Fora, publicado em 2012. “Eu fiquei um tempo longo sem escrever romances. Nesse livro, eu faço novamente uma história de uma viagem, como Galileia (2008). Um dos títulos provisórios era A Paixão Viajante”, conta o escritor.
A raiz de Dora Sem Véu é antiga. A trama vem de uma série de contos que Ronaldo mostrou a Fernando Monteiro anos atrás. O colega destacou uma novela – achava que havia ali material para um romance. “Eu transformei a novela em um conto, mas nunca me saiu do juízo que tinha o tema para o uma narrativa mais longa ali. Esse mote ficou plantado em mim. Quando lancei O Amor das Sombras há três anos, passei a anotar e escrever para esse romance, juntando pequenos pedaços”, revela o escritor.
O romance é o primeiro em que Ronaldo narra usando a voz em primeira pessoa de uma mulher – uma senhora de 65 anos. “Faz um tempo em que eu não escrevia contos na primeira pessoa com uma personagem mulher. Dora Sem Véu tem mais de uma voz narrativa, mas 80% é contado por uma mulher. Meus narradores nos romances são homens jovens, de menos de 30 anos”, explica. “Até por isso, foi um livro que me deu muito, muito trabalho.” Ao contrário do que pode parecer, no entanto, Dora não é a narradora: é uma personagem mulher desaparecida no livro.
Mesmo que o mote fosse antigo, eventos presentes influenciaram a construção da obra. “Eu conheci um paciente da enfermaria que durante três meses me contou muitas histórias. Eu decidi contar uma das histórias dele. Quando esse trecho surge, o personagem se torna o principal no romance”, afirma Ronaldo, que é médico. Ao mesmo tempo, Dora Sem Véu é marcado pelo tempo atual: “É um romance de 2018, com as questões de 2018, pensadamente falando sobre as questões do Brasil, com a presença de várias camadas sociais, com uma mistura de universos”.
“É também um romance que assume uma defesa grande do Nordeste e dos intelectuais nordestinos. Contra tudo e contra todos os revezes, o Nordeste é um lugar que nos pertence como narradores. A geografia nos faz de fato isolados e diferentes, talvez mais pertencidos à terra do que em outros locais”, pondera. Nesse sentido, assim como na ideia de uma viagem afetiva, Ronaldo traça um paralelo com Galileia – ambos seriam romances inquietos, sobre o não-pertencimento.
Quem vai assinar a apresentação da obra é o crítico e professor da UFPE Anco Márcio Tenório. “Anco já me falou que não via meus livros de contos como uma série de histórias isoladas. Ele diz que vê ali um encadeamento que não sabia definir o que é, uma voz narrativa forte. Algo que lembrava o fio narrativo de As Mil e uma Noites. Quando ouvi isso, fiquei com o desejo plantado de fazer um romance com mais de uma voz narrativa”, confessa. Ao reler Os Demônios, de Dostoievski, lembrou como gostava da ousadia do autor russo de colocar dentro de um romance com um narrador onisciente um outro narrador.
O último capítulo do livro Ronaldo descreve um sonho – seu editor, Marcelo Ferroni, achou que se tratava de um delírio. “Eu tive um sonho terrível, um sonho com o diabo. Eu chegava em uma casa muito grande, e essa casa era uma de mãe casa de santo. Meu pai estava morrendo em um quarto, e eu nunca o via”, conta. No meio do sonho, sentiu que desmaiava, como se o diabo tivesse baixado nele. Não era o final que planejava para a obra, mas sentia que tinha que terminá-la assim. Era o véu final da obra: agora resta a expectativa para apresentar o seu novo universo romanesco.