Raimundo Carrero lança 'Condenados à Vida', reunião de quatro romances

As narrativas Maçã Agreste, Somos Pedras que se Consomem, O Amor Não Tem Bons Sentimentos e Tangolomango ganharam reedição cuidadosa
Diogo Guedes
Publicado em 15/07/2018 às 7:18
As narrativas Maçã Agreste, Somos Pedras que se Consomem, O Amor Não Tem Bons Sentimentos e Tangolomango ganharam reedição cuidadosa Foto: Diego Nigro/JC Imagem


A gente vive é para ser derrotado, diz um trecho do romance Maçã Agreste. De certa forma, não é só em sua aspereza impiedosa e incômoda que a obra, publicada em 1989, se faz sintomática da criação do escritor Raimundo Carrero. É também ali que nascem os personagens – perturbados e assombrados pelas próprias tragédias – que reapareceriam em vários outros romances do autor. Não haveria narrativa melhor para iniciar a reunião de quatro livros do autor, na principal homenagem pelos seus 70 anos, completados no fim de 2017.

Organizado pela Cepe Editora, com tratamento cuidadoso e de luxo, o volume Condenados à Vida é uma forma de atestar a dimensão da literatura de Carrero. Além de Maçã Agreste, estão lá outros três romances: Somos Pedras que se Consomem (1995), O Amor Não Tem Bons Sentimentos (2008) e Tangolomango (2013). São narrativas independentes, mas que desdobram dentro de si a vida e a herança de dor de uma família através de diferentes personagens: o patriarca Ernesto, a esposa Dolores, os filhos Raquel e Jeremias, a tia Guilhermina, Matheus, Leonardo, entre tantos outros.

Cada um dos livros ganhou uma capa nova, produzida pela designer e ilustradora Hallina Beltrão, que também criou a capa geral da obra. Além dos quatro livros de Carrero, o crítico literário José Castello assina um poderoso prefácio, que ajuda a entender a capacidade do autor pernambucano de, através da linguagem e do turbilhão do humano, desvelar o mal-estar de estar vivo. A edição de 664 páginas vai ser lançada no próximo sábado (dia 21), dentro das atividades da Praça da Palavra do Festival de Inverno de Garanhuns, que celebra a obra de Carrero também com outras atividades. Na semana seguinte, no dia 27, vai ser tema de um debate dentro da Casa dos Desejos, na programação paralela da Festa Literária Internacional de Parati (Flip).

O nome já sugere que a tetralogia não é uma literatura da distração, de um envolvimento descompromissado. Como o próprio Carrero descreve, trata-se de “uma série de novelas que forma um painel da derrocada e da absoluta decadência de uma classe deteriorada pelas relações humanas sem barreiras, liberadas de ética e de respeito”. Desde Maçã Agreste, e com uma intensidade crescente até Tangolomango, o autor revela o interior dos seus personagens – pensamentos, mas também desejos, sadismos e fraquezas – sem se prender à linearidade e ao didatismo.

Não por acaso, a obra de Carrero foi amplamente reconhecida nesse ínterim. Com Somos Pedras que se Consomem, em 1995, ele venceu o Prêmio APCA e também o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Em 2000 e em 2010, seria agraciado ainda, respectivamente, com os prêmios Jabuti e o São Paulo de Literatura.

ESPELHO

No seu belo texto, Castello descreve os romances como “um espelho devastador do nosso presente”. A prosa de Carrero de fato parece antecipar tensões contemporâneas: o fanatismo religioso da seita Soldados da Pátria por Cristo, a solidão irrecuperável, a degradação e a violência. Para o crítico literário, assim o autor foge das armadilhas de muitos livros assépticos recentes. “A relação entre ficção e realidade não é mecânica, tampouco imediata. É um fato que a maior parte dos romances de hoje guarda uma aparência um tanto anêmica, estéril, insuficiente mesmo, em contraste com o dinamismo e a brutalidade do real”, escreve Castello.

Em um dos trechos, o fanático religioso Jeremias confessa: “Uma resposta é o que não espero nem pretendo. Que os outros procurem respostas para as danações que sou obrigado a carregar”. A experiência desses romances, cada uma a sua forma, passa um pouco pelo leitor procurar respostas para as provações (e erros) dos personagens de Carrero. Mesmo quando eles são totalmente vis ou vítimas, ainda é possível encontrar neles mais ódio ou piedade, e é possível ter dó do destino de todos eles.

A leitura não é simples, nem do ponto de vista da linguagem, nem no âmbito da sua temática. Ainda assim, se faz necessária porque é justamente a função da arte ampliar o que entendemos pelos outros e pelo mundo. Em Somos Pedras que se Consomem, Carrero escreve que a “vida é o vômito dos deuses”. Estar condenado à vida é isso, parece dizer o autor: tentar sobreviver ao caos e agonia de estar sem respostas em algo tão voraz como o mundo.

MAÇÃ AGRESTE

Os romances de Carrero não são fáceis de definir, pois eles se baseiam mais nos desejos e transformações dos personagens do que na mera trama. Maçã Agreste, dividido em três partes, traz a família que se faz presente em boa parte das obras do autor. Jeremias é um fanático religioso, que segue a seita Soldados da Pátria em Cristo, que engana fiéis, incentiva o militarismo e esconde, por trás do moralismo, as depravações dos seus líderes. O seu pai é quatro homens em um só: Ernesto Cavalcante do Rego, Dom Ernesto, o Rei das Pretas, o Velho. A busca de Jeremias, com seu fluxo de consciência, é de certa forma por se vingar do seu pai. É um romance constituído por várias vozes, com Dolores, a mãe, narrando o início, e ainda a presença de Sofia e da irmã de Jeremias, Raquel. Para José Castello, “Maçã Agreste é um romance que se contorce no tempo. Uma narrativa que experimenta os estados mais extremos do ser”.

SOMOS PEDRAS QUE SE CONSOMEM

Quatro personagens compõem o cerne de Somos Pedras que se Consomem: Leonardo, Ísis, Siegfried e Biba. Sua relação com Maçã Agreste talvez seja a mais direta: um dos personagens, Leonardo começa a ler o próprio livro de Carrero dentro da ficção. É ele também que tem contato com a violência do mundo ao ver um policial, Joaquim, queimar um menino vivo e enfiar estacas nele. O sádico Siegfried age de acordo com a sua crença em uma relação entre o feminino e a violência: estupra a prostituta Biba enquanto ela está em coma. A moça termina indo morar na mesma pensão que Raquel e Jeremias, de Maçã Agreste, enquanto Siegfried flerta com o sadismo absoluto da crueldade, da loucura e da perversão. Sempre próximo à literatura, Leonardo diz: “Preferia sangrar para não ter que se unir ao tédio e à náusea”. O volume venceu o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e também o Prêmio Machado de Assis.

O AMOR NÃO TEM BONS SENTIMENTOS

Logo no início de O Amor Não Tem Bons Sentimentos, o personagem Matheus se depara com o corpo da irmã, Biba, boiando na água, aparentemente morto. Estranhamente, ele não se choca ou se comove com a imagem. “Não sinto nada. (...) Devo sentir algum tio de sensação. Digamos, devia ter pelo menos... compaixão, piedade... piedade e compaixão não são a mesma coisa? Não, nem compaixão nem piedade”, pondera. Depois da morte, que permanece como um mistério na sua própria memória, ele vai morar com Tia Guilhermina, personagem que vai reaparecer como a protagonista de Tangolomango, até porque sua mãe, Dolores, sente nojo dele. Para José Castello, o Matheus (músico como o próprio autor, que já tocou sax) do romance é possivelmente “o maior personagem da ficção de Raimundo Carrero”. “As pessoas, mesmo as crianças, sempre mentem. Ou fingem. Mentem e fingem”, afirma o personagem.

TANGOLOMANGO

Logo no início, Carrero alerta que Tangolomango deveria ser lido em um só fôlego, “de preferência das seis horas ao meio-dia, com a força da luz e do sol”. A obra se passa durante o Carnaval, focada na personagem de Tia Guilhermina, uma senhora que vive a solidão e o desprezo dos demais. O personagem de Matheus, que matou a sua irmã e sua mãe, aparece na obra por sua ausência, na culpa que desperta em sua tia, que o criou. Enquanto transcorre ao longo de um dia, com o singular bloco O Cachorro do Homem do Miúdo, frases de frevos famosos e outras referências à Folia de Momo, o livro passeia livremente, com idas e vindas, pelas memórias de Guilhermina e seus desejos – ela alimentou, por boa parte da vida, o sonho de ser uma prostituta. Carrero também traz o isolamento dela em relação aos vizinhos e a culpa pela relação complexa – beirando o incesto – com o malicioso sobrinho.

TAGS
raimundo carrero
Veja também
últimas
Mais Lidas
Webstory