Apesar de já serem velhos conhecidos, a proximidade da cineasta Luci Alcântara com o escritor Raimundo Carrero começou há dez anos, quando ela gravava o documentário Geração 65: Aquela Coisa Toda. Quando conversou com os poetas, a diretora marcou uma filmagem com eles em estúdio para gravá-los recitando. Carrero era o único prosador dentre os entrevistados, e deu uma ideia diferente: Luci o registraria no palco, em uma montagem da peça O Amor Não Tem Bons Sentimentos, interpretada pelo seu próprio autor.
Desde então, Carrero sofreu um AVC, se recuperou dele e ainda lançou três romances – Minha Alma É Irmã de Deus (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura), Tangolomango e O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo. Quando começaram a surgir projetos para celebrar as suas sete décadas de vida, completadas em dezembro do ano passado, Luci passou a planejar um documentário sobre o autor. Nascia assim Carrero: O Áspero Amável, obra que vai ter sua estreia no Recife neste sábado (4), às 14h, com sessão especial no Cinema do Museu, na Fundação Joaquim Nabuco de Casa Forte. Na ocasião, acontece também o pré-lançamento recifense da obra Condenados à Vida, que reúne quatro títulos de Carrero, ligados pela recorrência de personagens: Maçã Agreste (1989), Somos Pedras que Se Consomem (1995), O Amor Não Tem Bons Sentimentos (2007) e Tangolomango (2013).
A relação de Luci com a revista Continente é antiga: dois dos seus filmes, Geração 65 e JMB – O Famigerado, foram encartadas pela publicação. O mesmo acontece com seu novo documentário, em que Carrero fala sobre seu assunto preferido: a criação literária e suas técnicas e estruturas. As cenas são de 2008, com Carrero no seu escritório, do filme de Luci baseado em A Minha Alma É Irmã de Deus (2009) e atuais, com o autor em sua casa, no Centro Cultural que leva o seu nome e na Academia Pernambucana de Letras.
“Quando surgiu a ideia do documentário, perguntei a Carrero se ele toparia, porque seria preciso fazer novas filmagens, levar ele para outros locais. Ele topou”, conta Luci. “Ele já conhecia a minha fama de filmar demais, mas, ainda assim, ficou com raiva, pediu para parar, disse que ia terminar no hospital. No final, ao ver o documentário, ele disse: ‘Luci, eu te amo’.”
A filmagem excessiva é um método para a cineasta. “A quantidade é muito importante para que eu tenha a qualidade. Como hoje em dia não é preciso ter limite, ao contrário de antes, nas horas filmadas, isso me ajuda. Ainda assim, dá muito trabalho: eu contrato alguém para transcrever tudo, imprimo e vou lendo e selecionando. Quando vou para a ilha de edição, já chego com uma montagem de cerca de 40 minutos para transformar em 26. E corto sem pena, tenho experiência, sem problema algum”, narra Luci.
Para a diretora, foi mais fácil fazer as gravações porque o tema interessava Carrero. “O foco do filme era o fazer, o escrever. O objeto não é Carrero, mas sim os seus livros”, resume. Como nas filmagens de JMB – O Famigerado, em que Jomard Muniz de Britto entra diversas vezes em conflito com a câmera, Luci também aponta Carrero como um personagem autônomo e complexo. “Carrero também fala o que ele quer, ele invade e manda na narrativa. Eu depois filtro, seleciono, mas foi ele quem me norteou com o seu amor pela literatura”, comenta a cineasta.
Pelo seu formato, Carrero: O Áspero Amável não vai circular em festivais. Depois da circulação pela revista Continente, a ideia é entregar cópias do filme para a TV Pernambuco e TV Senac. Além do apoio da Cepe Editora, o filme contou com músicas de Cláudio Almeida, que cedeu sete faixas do seu disco para a trilha.