Uma das grandes ambições da arte é conter, na narrativa de uma vida ou de uma pessoa, o mundo ao redor, em sua velocidade e complexidade. Nenhuma história individual pode esgotar um século, até porque suas ramificações são infinitas. Pode, no entanto, tentar demonstrar, com síntese e comoção, os efeitos dele sobre algumas pessoas.
O personagem Julio nasce no ano de 1900 e morre em 2000, sempre vivendo em uma pequena cidade do México. Sua trajetória é silenciosa, com poucas palavras suas, mas repleta de tragédias íntimas e coletivas, com pessoas que aparecem e somem da sua vida. Através dele, o quadrinista americano Gilbert Hernandez compõe um retrato doloroso e esperançoso de um século na HQ O Dia de Julio (Nemo, 100 páginas, R$ 44,90, tradução de Jim Anotsu).
O artista é um dos nomes mais celebrados dos quadrinhos mais autorais, aqueles que circulam fora do universo dos heróis e das revistas para crianças, nos Estados Unidos e no mundo. Com Love & Rockets, ele e seus irmãos Jaime e Mario fizeram uma pequena revolução no universo da arte sequencial, abrindo as portas para narrativas mais adultas, personagens e tramas maduros e uma visão mais complexa dos universos ficcionais.
O título pode sugerir que a narrativa culmina com um dia decisivo para o personagem, mas não se trata disso. O dia de Julio é, na verdade, os 100 que o atravessam, desde o desespero da sua boca aberta ao nascer até a escuridão que o espera após o fim de tudo.
Se em outra história sua, Sopa de Lágrimas, o autor flerta com o realismo mágico e cria uma espécie de Macondo pessoal, a narrativa desse garoto nascido em uma família humilde aponta mais diretamente para a epopeia de Cem Anos de Solidão, e não só pela temporalidade escolhida. O Dia de Julio constrói, ao redor do seu personagem, a narrativa de uma dinastia como a dos Buendía. Não por acaso, antes de sua história começar, o livro traz uma pequena página apresentando os seus personagens e revelando como os rostos deles vão envelhecendo com o tempo.
Esse século vivido não é tanto de solidão, mas de incompreensão: Julio, quase sempre é um coadjuvante na vida dos que os cercam, e só permite ao leitor intuir as dores e segredos que o marcam em meio a parentes problemáticos, abusos, envenenamentos e guerras. O Dia de Julio ilustra na vida dos seus personagens a era de extremos e de mudanças vertiginosas que foi o século 20, ainda que uma cidade pequena do México pareça um lugar menos tocado por tudo isso. Uma das belezas do livro de Gilbert é saber mostrar que, mesmo que muito lentamente, e a custo de muita dor, é possível ver a transformação do mundo que antes existia
Ainda assim, o grande elemento do livro é a sua forma elíptica de contar a história. O leitor pega recortes da vida dos personagens como peças a serem encaixadas na cabeça de cada um. Em algum momento, O Dia de Julio pode parecer até uma narrativa apressada, curta demais, mas é justamente o contrário: é uma síntese e, como as grandes histórias, é feita mais do que não é dito explicitamente.