“A revolução depende/ de poucos acessórios”, diz um dos trechos do livro Talvez Precisemos de um Nome para Isso, da poeta e tradutora carioca Stephanie Borges. Na obra, a autora faz uma poderosa crítica, ao mesmo tempo de forma íntima e social, dos preconceitos, imposições e simbolismos dos cabelos, olhando especialmente para as mulheres negras. Nesta entrevista, Stephanie conta como o livro, vencedor do Prêmio Cepe Nacional de Literatura, nasceu em diálogo com outras obras e como encadear, junto a histórias pessoais, o imaginário de mitologias, religiões e lutas.
JORNAL DO COMMERCIO – O tema do cabelo é também o tema do controle em Talvez Precisemos de um Nome para Isso. Como o cabelo se mostrou um tema para você? Quando começou a escrever e pesquisar sobre o assunto?
STEPHANIE BORGES – A ideia de escrever um poema sobre cabelo surgiu da minha experiência de ter feito relaxamento do início da adolescência e até por volta dos vinte e três anos, e desde então ter usado o cabelo natural e observado como o comprimento, o fato dos primeiros fios brancos aparecerem criam situações em que as pessoas se sentem autorizadas a dar opiniões, pedir para tocar ou questionar como cuido do meu cabelo, o que sempre me pareceu uma invasão. A ideia da pesquisa veio junto com a escrita do poema porque eu queria incorporar discursos religiosos, científicos, memórias e diálogos sobre o cabelo e mostrar como todas essas coisas fazem parte da vida.
Só depois de ler mais autoras negras como a Chimamanda Ngozi Adichie e a Djaimilia Pereira de Almeida, que tratam do cabelo em Americanah e Esse Cabelo em paralelo com teoria feminista, comecei a pensar no padrão de beleza como uma questão de controle e que impacta a nossa autoestima e nossa subjetividade. Quando as mulheres, de modo geral, estão insatisfeitas com sua aparência o tempo todo, muito dinheiro e energia são investidos em se adequar, ou em chamar menos atenção possível, ou corresponder a uma aparência para conseguir um emprego. Sequer aprendemos a cuidar de nossos cabelos naturais porque já estamos em busca de soluções que nos poupem de questionamentos, discriminação ou intromissões.
JC – O poema é permeado de vivências íntimas, mitologias, escritos, histórias – os cabelos se mostram parte da própria história das mulheres, dos povos negros, da sociedade. Como foi unir diferentes visões para compor um livro pessoal e coletivo ao mesmo tempo?
STEPHANIE – Unir diferentes histórias era uma preocupação no processo de criação do poema porque eu não queria escrever um livro centrado apenas na minha experiência, então buscar relações com mitos, o que a Bíblia fala sobre a vaidade e os cabelos, foi uma forma de observar as diferentes ideia de beleza e poder, dois traços que, em geral, não são associados à mulheres negras, e que aprendemos a reconhecer e reivindicar.
Observar como a imagem de uma mulher é regulada pela visão cristã, quando a beleza das Orixás é exaltada na mitologia iorubá, é uma forma de convidar o leitor a repensar como determinadas ideias são construídas e normalizadas. Criar esses contrastes foi uma maneira de mostrar que existem múltiplas visões, formas de cuidar dos cabelos e que cada mulher deveria ter o tempo, a liberdade e a tranquilidade de descobrir como quer usar seus cabelos sem ter que se preocupar com as pressões sociais.
JC – Como o título sugere, o livro é também sobre a busca por uma palavra ou conceito que dê conta da mudanças, do renascer, das transições. Acredita na escrita como a busca por essas palavras ainda inexistentes? Isso tem uma relação com seu trabalho como tradutora?
STEPHANIE – Acredito que a poesia cria um espaço em que podemos expor as limitações da linguagem, disputar significados, propor novos usos para palavras e também criar neologismos. Na tradução a minha relação não é tão livre quanto na poesia, mas a minha preocupação é transpor o pensamento de outra autora para o português com a maior fidelidade possível as ideias e conceitos que elas usam em sua produção teórica.
Por exemplo, Audre Lorde se refere a crianças negras serem ensinadas a não gostarem de si mesmas numa sociedade racista. Não é uma construção comum em português, mas existe aí uma questão pertinente, na qual o cuidado na tradução é importante para mostrarmos que podem nos ensinar coisas que não necessariamente são boas ou úteis de se aprender. Na tradução de bell hooks ela fala sobre mulheres se tornarem female subjects ao reconhecerem sua subjetividade e se comprometerem com ações políticas contra o machismo e antirracistas, neste caso é importante evitar o masculino como norma e mostrar as mulheres como agentes e sujeitas de suas causas e lutas. A tradução da Jess Oliveira para Memórias da Plantação, da Grada Kilomba, tem uma série de observações sobre os cuidados de não reproduzir a violência racista na linguagem, é uma obra que traz várias reflexões importantes sobre a linguagem e o colonialismo que pode nos ajudar muito a pensar em novos conceitos.
JC – Durante a obra – e mais explicitamente nos agradecimentos – você elenca também uma trama de leituras, diálogos, discordâncias. Essa história dos cabelos é também uma história de suas leituras?
STEPHANIE – Sim. Eu escrevo basicamente porque sou leitora desde a infância. Os livros são parte da minha história, de como a minha visão de mundo foi mudando com o tempo, então me pareceu natural trazer as minhas referências para o texto, algumas delas citadas claramente, como Drummond ou Alan Pauls que escreveram sobre cabelo, mas precisava trazer também as poetas, prosadoras e pensadoras que acompanharam no meu amadurecimento, no percurso da escrita e também as fontes da pesquisa do poema.
Em certa medida, escrever, ainda mais em um território instável como o da poesia, é em grande parte o esforço de buscar os termos desejados. Não se trata de encontrar a exatidão, porque ela pode ser redutora, mas sim de revelar a dubiedade, o trajeto, as dores e simbolismos do que é preciso dizer.
No título do seu primeiro livro de poesia, Talvez Precisemos de um Nome para Isso (Cepe Editora), a escritora carioca Stephanie Borges parece falar tanto do desejo como dos entraves para se falar de um tema. O percurso do livro, vencedor da categoria de poesia do Prêmio Cepe Nacional de Literatura de 2018, é o de uma história – pessoal, coletiva e mítica – dos cabelos, especificamente, os das mulheres e os das mulheres negras.
Um dos principais diálogos da obra é com Esse Cabelo, livro de Djaimilia Pereira de Almeida. Stephanie avança sobre o preconceito de “futilidade intolerável” que parece acompanhar os assunto. Os penteados, ela ironiza, podem soar como uma questão acessória, um capricho. Os detalhes, sabemos, são uma das melhores formas de se revelar preconceitos, tentativas de controle, discursos.
Uma dos elementos poderosos do poema é uma afirmação: “não há nada de exótico aqui”. Assim, o livro se debruça sobre eufemismos da indústria, a naturalização da beleza através da dor e a ressignificação política. Em diálogo com muitos autores, Stephanie articula os incômodos, lutas e, principalmente, desfaz os atalhos das palavras repetidas até perder o seu poder.
Empoderamento, por exemplo, é uma tradução que diz pouco para a autora. Ao longo de um poemas, ela pondera outras opções para o termo: “apossar é bonito, é quase líquido e se espalha/ assenhorar-se pode ser irônico/ quando olhamos para o passado, senhores/ e no entanto, no dicionário não,/ mas três milhões e seiscentas e quarenta/ ocorrências no google/ de uma palavra deslocada abraçada/ pelo movimento rolando em sua timeline”.
Ao falar de cabelos, alisamentos, procedimentos e marketing, Stephanie mergulha seu livro em termos políticos. Ao abordar religões africanas, Medusa, literatura, ela desenlaça o imaginário silencioso sobre o poder, o perigo e dever dos cabelos. Os momentos mais bonitos dos fortes versos de Talvez Precisemos de um Nome para Isso, no entanto, juntam tudo isso com a própria sensibilidade. Stephanie mergulha na arte de abandonar de Sylvia Plath, estranhando “o aprendizado da permanência”. Outro verso é como um soco nos próprios traumas: “nos meus sonhos sou alguém que me perdoa”.