CENA LOCAL

Rap pernambucano cresce e se diversifica

Geração de rappers trilha o seu caminho renovando as temáticas e incorporando novas sonoridades

GG ALBUQUERQUE e NATHÁLIA PEREIRA
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GG ALBUQUERQUE e NATHÁLIA PEREIRA
Publicado em 13/11/2016 às 5:30
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Geração de rappers trilha o seu caminho renovando as temáticas e incorporando novas sonoridades - FOTO: Fotos: Divulgação
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Lançada em agosto, a música Sulicídio, do rapper baiano Baco com participação do pernambucano Diomedes Chinaski, estourou como uma bomba na cena do hip hop nacional. A faixa faz críticas diretas e nominais a outros rappers, gerando respostas como SulTaVivo!, do grupo paulista Costa Gold. Mas o ponto principal da faixa é a denúncia da centralização do movimento no eixo RJ/SP e a reivindicação por visibilidade para a cena do Norte e Nordestina. No primeiro verso, Diomedes questiona: “Como é que você nunca ouviu falar/ Nos bruxos lendários do Norte?”.

O rap é prolífico em Pernambuco desde os anos 1990, com grupos como Faces do Subúrbio, Inquilinus, Sistema X e DMP & os Fulanos. Ainda mais ativo, o gênero hoje passa por um momento especial, incorporando novas sonoridades, temáticas e políticas, chegando também ao interior do Estado.

 

Diomedes Chinaski é a persona artística de João Vitor de Souza Passos, 24 anos, rapper de Paulista, região metropolitana do Recife. O nome é um cruzamento de Diomedes, personagem da HQ homônima de Lourenço Mutarelli, com Henry Chinaski, alterego do escritor beatnik Charles Bukowski. Nas mixtapes O Aprendiz (de dezembro do ano passado) e Ouroboros (de março), Diomedes consolidou sua música com os beats eletrônicos e pesados do trap. A mesma abordagem aparece em Coração no Gelo, o segundo álbum do grupo Chave Mestra (composto por Chinaski e Faraó, Moral, Louco do Texas e Zaca de Chagas), que versa sobre a vida de repressão e crime nas quebradas de Pernambuco.

Atualmente Diomedes grava no estúdio da faculdade Aeso Barros Melo em seu primeiro álbum, Iluminuras. Na quinta (10), lançou o primeiro single, com o mesmo nome do disco. Com beats orgânicos, bateria acústica, baixo e detalhes no piano, mostra uma nova direção sua música – não à toa, o disco tem participação de Sofia Freire, cantora e pianista de fora do circuito rap.

 

Ex-integrante do Inquilinus, Gustavo Pontual, 34 anos, trabalha a carreira solo lançando clipes no YouTube – os mais recentes são Fora de Órbita e a romântica Acontece, com participação da cantora Erica Natuza. “Comecei adolescente, em Setúbal, nos anos 1990. O rap não tinha tantos estilos diferentes. Aqui no Brasil era um tema mais de periferia, protesto. Com o tempo foi evoluindo e abordando vários temas e fui enveredando por outros caminhos”, conta Gustavo, cujas maiores influências são Black Alien e o grupo Quinto Andar.

“Não me sinto bem falando de um tema distante, geralmente comigo é uma visão mais pessoal. Não tem muita análise da humanidade, falo coisas simples. Meu modo de ver, meus questionamentos subjetivos”, explica.

 

Ainda este ano Gustavo começa a gravar o EP Visse (título provisório) com seis ou sete faixas, acompanhado por banda. “Gosto muito do formato com DJ, mas também gosto desse calor do som orgânico e dar mais espaço para influência dos membros da banda”.

Morando em São Paulo, a recifense Lívia Cruz, 29 anos, também apostou no YouTube como plataforma para expor suas músicas e opiniões sobre a cena rap, para a qual se dedica há mais de uma década. A iniciativa veio depois da repercussão da faixa Eu Tava Lá, lançada em setembro, na qual questiona o machismo presente no gênero - uma das polêmicas também causadas por Sulicídio: “Porque rap é pra homem, né? /Mas cê é cobrada dez veiz mais só por ser mulher”, canta.

 

“Acho que as coisas melhoraram um pouco, ainda é ruim, mas antigamente era bem pior. Se coubesse aos homens usar de violência numa determinada situação, isso acontecia com mais facilidade”, destrincha Lívia em entrevista ao telefone. “A gente ainda causa muito incômodo, e isso não é coisa só do rap, é da sociedade, não só em relação a duvidarem da nossa capacidade, mas ao fato de andarmos na rua com medo, por exemplo. Dentro do hip hop tá melhor porque há mais mulheres ocupando espaço e por haver uma mínima consciência de que vamos, sim, ocupar. A gente forçou a entrada, mas se der mole volta tudo atrás. Dialogando se chega a todo lugar”.

Há sete anos com moradia fixa na cidade considerada berço do rap nacional, ela avalia como válida a questão levantada por Diomedes em Sulicídio, considerando, porém, que é preciso haver respeito de todas as partes. “Uma vez que eles reivindicam uma causa legítima, de abranger o mercado, acho que é preciso rever a questão do discurso, pra não acabar se igualando a outros MCs e cair no mesmo clichê machista. Eles têm que se questionar pra não se tornarem igualmente um algoz”.

 

Sem previsão para gravação de novo álbum, Lívia tem se dedicado a composição de singles, como Ordem na Classe, que ganha clipe no próximo dia 22/11.

“Recebi muitas mensagens de ódio por causa da Eu Tava Lá, uma enxurrada de coisas pesadas. É muito engraçado como os caras se incomodam quando a gente se afirma. Escrevi a letra pra relatar as partes mais importantes da minha carreira, eu nunca tinha feito isso antes. Compondo ela descobri que nunca parei, que tô sempre fazendo coisas, me descobri segura pra relatar a dor que as mulheres passam sendo subjulgadas. Mas eu tô descobrindo como utilizar bem essa ferramenta que é a internet. Já passou da hora da gente dominar os meios de divulgar nossas ideias”, dispara.

MINAS DE RIMAS PODEROSAS

Na contramão dos embates protagonizados por rappers do Sudeste e Nordeste do País, as mulheres MCs têm feito da união um impulso para fomentar a produção e valorização de seus trabalhos. Em Pernambuco, grupos como o Arrete (de Jaboatão dos Guararapes) e o Donas (do Recife) preparam álbuns com previsão de lançamento para 2017. Em comum, os beats e rimas contra a misoginia.

De volta à ativa após dez anos de pausa, Mariana Oliveira e Fabiana Coelho, do Donas, ensaiam as novas composições ao mesmo tempo em que conversam com produtores que assumam o segundo álbum da carreira, provisoriamente batizado de Vivona, referência aos percalços que ultrapassaram até retornar à música. O disco já tem oito letras prontas, que ganharão batidas tradicionais, sem deixar de flertar com as novas tendências, como o trap. “A gente quer uma coisa bem profissional pra poder rodar o Brasil. Temos nossas raízes, mas queremos que o Nordeste apareça em outros lugares, quebrar essa barreira de que o nosso rap só é consumido aqui”, conta Mariana.

 

Na companhia do DJ Charles Mello, elas também se preparam para desenvolver atividades em parceria com a Delegacia do Alto do Pascoal, na Zona Norte da cidade, em prol de mulheres vítimas de violência de gênero. “A ideia é ajudá-las a elevar a autoestima, porque quando ela existe há também vontade de mudança, de ver o que tá errado e achar possibilidades de solução”.

A dupla tem, ainda, a proposta de fazer uma turnê com MCs daqui, visitando outros Estados e fazendo shows com as rappers dos locais por onde passarem. O projeto é um desdobramento do Baile Delas, evento realizado em outubro pelo produtor Felipe Massa com foco na produção das nordestinas. “Além disso, estamos organizando uma faixa em conjunto com vários grupos femininos – cada um coloca um verso, daí adicionamos os mesmos refrão e beat, que será produzido por César Hostil. Depois, gravamos um vídeo e postamos na internet”, detalha Mariana.

Sobre as réplicas e tréplicas entre os rappers do Sudeste e Nordeste, ela, pioneira entre as MCs locais, opina: "a gente tem que tomar cuidado pra que essas respostas não virem guerras e venhamos a ser as “novas gangues de Nova Iorque”, quando se começava a falar sobre algo importante e depois acaba na disputa de ego. Por mim parava por aí, senão vira guerra. Enquanto a gente prega união, os caras pregam separação. É briga de menino que acaba ofendendo outras pessoas e criando letras fakes pra ser o melhor na rima".

No mesmo ritmo intenso de produção estão Ya Juste, Nina Rodrigues e Weedja Lins, do Projeto Arrete, para finalizar Sempre Com a Frota, primeiro disco, que nasce com apoio do Funcultura. O nome partiu de uma das dez faixas, homônima, escrita por Nina há cinco anos. “Nela eu falo da força que minhas companheiras e eu temos, de como sempre acreditei no rap feitos por nós. Vivi uma fase, há uns 15 anos, em que a gente precisava se comportar de forma “masculinizada” pra ser aceita. Eu tenho um problema nas cordas vocais causado pelo esforço que fazia pra cantar nesse tempo”, conta Nina.

Gravado no Fábrica Estúdios por Marcílio Moura, o álbum chega para reforçar o recado de singles como Arrete Não, com versos sobre emancipação e poesia popular. Riva le Boss e Felipe Maia ficaram responsáveis por traduzir a musicalidade pretendida pelo trio, com “melodias e batidas orgânicas”. Nas participações, o músico Pedro Ferreira, tocando pandeiro, e os cantores Preta Anna (da Voz Nagô), Marrom e Paçoca – dois nomes atuantes na cena hip hop de Jaboatão.

Sempre Com a Frota chega no primeiro semestre do ano que vem, em formato físico e para audição em streaming, além ser distribuído na Colônia Penal Feminina do Recife e no Instituto de Cegos Antônio Pessoa de Queiroz, com o encarte em versão Braille.

“As meninas estão se movimentando”, pontua Ya Juste. “Os caras falam – ‘vocês não são organizadas, não fazem disco’, mas é mentira. O que falta é eles nos olharem não só como público, somos artistas e trabalhamos muito. A gente estuda levada, flow, poesia, se dedica bastante ao que faz. Eles acham que música pra mulher tem que ser “love song”, mas a gente gosta de muitas outras coisas. Existe uma luta paralela, como a das mulheres negras, que muitos deles não veem”, finaliza ela.

ZÉ BROWN LIGADO NA NOVA GERAÇÃO

O veterano Zé Brown, líder do Faces do Subúrbio, banda que surgiu no Alto José do Pinho nos anos 1990, na Zona Norte do Recife, também está em plena atividade. Em São Paulo, ele finaliza a produção de Poesias do Povo, fruto de quatro anos de pesquisa dos ritmos regionais. Com lançamento previsto para o início de 2017, o álbum é recheado de participações especiais: Fernandinho Beat Box, DJ Hum, Alessandra Leão, Maciel Melo, MC Jack, João Parahyba (do Trio Mocotó), entre outros.

Na última semana ele lançou o clipe de Chegou a Hora, primeiro single do álbum. “Eu procurei ser mais ousado do que o anterior Repente Rap Repente (2009). Deixei essa influência minha mais de cara”, afirma.

Zé Brown adianta que o Faces do Subúrbio volta a gravar no ano que vem, com ele dividindo as rimas com Samuel Negão. A formação da banda tem ainda Oni (guitarra), Perna (bateria), Pinho (baixo) e DJ Beto.

O rapper também é entusiasta da nova geração de rappers de Pernambuco e suas novas sonoridades. “É o momento. Eu respeito pra caramba e escuto também. Cada um quer colocar na rua o que tá vivendo. Eu tô lançando o Poesias do Povo porque tô ouvindo e pesquisando muita coisa e queria juntar um pouco de cada coisa. Mas o trap é um estilo que já chegou como revolução”, afirma. “No início dos anos 90, quando o Faces do Subúrbio misturava o rap com embolada, repente um pouco do rock e o lado percussivo o pessoal dizia que não era rap. Não sabiam o que era. Também foi assim com Chico Science na época do manguebeat. E muita gente gosta da nova escola. É uma renovação”.

Sobre o impacto e as letras agressivas de Sulicídio, Zé Brown comenta: “Foi uma forma que os caras encontraram de se expressar, de colocar o sentimento pra fora. Eu respeito. Mas deu um boom que causou resposta de alguns MCs daqui (de São Paulo). Me lembrou a coisa da embolada, que um fica furando o outro no verso. Tem essa agressividade poética, que não é pessoal. O meu medo é que vire algo pessoal, até chegar em carro de polícia por causa de verso”.

A VOZ QUE VEM LÁ DO INTERIOR

O rap também ganha voz no interior pernambucano. É o caso de Junior Baladeira, de Ouricuri, no Sertão. Com dois álbuns lançados – Versos Alados (2010) e A Insistência Poética dos Diferentes (2012) –, ele lança este mês o EP A Derrocada. “Eu comecei dançando brake, em 2000. Via na televisão, no Raul Gil e tinha interesse em fazer brake, mas não tinha onde”, diz Junior. “Na época eu vi uma reportagem do Jornal do Commercio sobre o Instituto Vida, que estava dando umas aulas de brake, e fui lá fazer. Passei uns 6 meses em Recife. Como já estava envolvido com brake, fui me envolvendo com rap também. Mais ou menos por 2005, eu comecei a escrever umas letras, mas a sério mesmo foi em 2010, gravando CD, fazendo show”, conta ele, que já se apresentou em diversos estados do Norte Nordeste.

 

“Querendo ou não, ainda hoje o rap do Sul é o que domina. Eu não conseguia me sintonizar nas gírias de São Paulo que eles falavam, na realidade deles. A gente morando no Sertão, cidade pequena do interior têm outra realidade. E eu sempre gostei de música regional. Então tinha uma ânsia mesmo de construir o rap com o que a gente vivia. Por isso a gente foi fazendo o rap da nossa vivência. A gente acompanha à flor da pele o xaxado, a dança de São Gonçalo, o cordel. Eu mesmo já lancei mais de 20 cordéis”, detalha.

Aos 21 anos, PRK, de Belo Jardim, no Agreste, começou no rap aos 15 anos e teve grupos pernambucanos como o Chave Mestra (de Diomedes Chinaski e outros) como uma das principais influências. Em outubro, ele foi um dos selecionados na convocatória do Coquetel Molotov para bandas do interior do Estado e apresentou-se no palco do festival em Belo Jardim e Recife. PRK lança este mês a sua primeira mixtape, entitulada Entre Rosas e Espinhos.

Sua sonoridade é calcada tanto nos beats clássicos dos anos 1990 quanto nas texturas e eletrônicas e beats carregados do trap. “Muitos não consideram uma vertente de rap. Eu vejo que acima de tudo é música e não deveria ter essa barreira no rap, que sempre esteve quebrando barreiras”, opina. Mesmo que não use explicitamente elementos de música “regional”, ele incopora as gírias e expressões da linguagem cotidiana local. “A mixtape vai vir mostrando que realmente dá pra tirar rap de todo lugar – no interior de Pernambuco, no eixo RJ/SP, no Brasil inteiro”.

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