Fruto Estranho (Strange Fruit), metáfora para imagens de p essoas negras penduradas em árvores, é extremamente forte mesmo 80 anos depois de a canção, de Abel Meeropol e Laura Duncan, ter sido gravada por Billie Holiday. Foi feita a partir de um poema escrito por Meeropol em 1937, originalmente intitulado Bitter Fruit, um protesto contra linchamentos e enforcamento de negros, no Sul dos Estados Unidos. A primeira vez que Billie Holiday a cantou em público, no inicio de 1939, no lendário Cafe Society, em Nova Iorque, seu empresário pediu que os garçons interrompessem o serviço, que parte das luzes fossem apagadas, e que fosse a última canção do show, sem direito a bis. A canção seria incorporada ao repertório da maior cantora de jazz e, apesar da polêmica que causou, foi seu disco mais bem sucedido comercialmente.
Oito décadas depois, os tempos mudaram, já não se veem estranhos frutos em árvores do Sul dos EUA, e é possível cantar, sem provocar comoções, um álbum inteiro com canções sobre a experiência de ser mulher e negra num país em que a estátua de uma mulher simboliza a liberdade. Rhiannon Giddens, Leyla McCalla, Allison Russell e Amythyst Kiah formam a banda Our Native Daughters, que lançou o álbum de estreia em fevereiro, Songs of Our Native Daughters.
Um supergrupo de mulheres negras, a mais conhecida delas é Rhiannon Giddens, da banda Carolina Chocolate Drops, banjoísta, bandolinista e pesquisadora de música folk. “Vejo este álbum como parte de um grande movimento que resgata a história da mulher negra neste país”, afirma Rhiannon Giddens, no release que escreveu para o disco. “Tenho muita pena deles/mas eu tenho que ser mãe/como passaremos sem açúcar e rum/especialmente açúcar, que é tão necessário/Como? abdicar das nossas sobremesas, ou café e chá?”, versos de Barbados, um poema em que uma dona de casa branca diz lamentar pelo sofrimento dos escravos, mas o vê como um mal necessário.
O poema é declamado sem fundo musical e é seguido por Quasheba, Quasheba, em que Rhiannon Giddens canta sobre a escrava da qual sua família descende. Um disco sobre sofrimento e injustiças infligidas a afro-americanas, cantadas por quatro afro-americanas que tocam banjo, instrumento que faz parte da herança cultural legada pelo africano. Songs of Our Native Daughters, feito Strange Fruit, é uma golfada de verdades no rosto de quem ignora um passado cujas sequelas estão presentes, não apenas nos Estados Unidos mas onde as injustiças estenderam-se dos cativos à sua descendência.
Embora os temas não sejam de fácil digestão, mexam com sentimentos de gente de qualquer coloração epidérmica, o álbum contém 52 minutos de grande música. As quatro cantoras mergulham profundamente nas águas do folk, percorrendo a herança de estilos e gêneros saídos da chamada diáspora africana, zydeco, bluegrass, ao reggae, neste caso com um irrepreensível versão de Slave Driver, de Bob Marley (do álbum Catch a Fire, dos Wailers, 1973).
Parte do repertório é autoral, parte pinçado de pesquisas no Smithsonian Folkways, responsável pelo lançamento de Songs of Our Native Daughters. A faixa Better Git Yer Learnin é uma antiga canção para banjo, em que Rhiannon Giddens colocou letra. Lavi Difisil, em creole haitiano, é cantada neste dialeto e em inglês. Rhiannon Giddens, cantora e compositora, que já ganhou Grammy com a Chocolate Drops, é também musicóloga. Songs of Our Native Daughters foi idealizado por ela, que convidou três cantoras que seguem a mesma trilha da folk music. As tarefas foram divididas.
O banjo é também simbólico, um instrumento quase que exclusivamente tocado por homens. Mas as ousadias vão muito além. O quarteto pegou um clássico do folk, John Henry,cantado por quase todos os intérpretes do gênero, de Woody Guthrie a Peter Seger. John Henry é um escravo obrigado a trabalhar com uma marreta na construção de ferrovias. Trabalha até perder as forças e morrer. O Our Native Daughters faz um remake da canção, a personagem agora é a mulher de Henry, Polly-Ann, que consegue trabalhar com a marreta mais que o marido, e cada vez mais forte: “Polly você consegue levantar estar marreta/sim, eu posso, sim, eu posso/posso manejá-la, posso bater com ela/mais forte do que pode um homem”
Songs of Our Native Daughters tem uma faixa que é um remake feminino de Strange Fruit, chama-se Mama’s Cryin’ Long, a música mais forte do álbum, interpretada de forma minimalista. Palmas, marcadas por percussão discreta, canto e resposta. A história contada por uma menina, de uma mulher que é estuprada várias vezes seguidas por um capataz, o mata com uma faca e é enforcada: “Mamãe tá fugindo velozmente (pra escapar do empregado do patrão)/foi pega mesmo assim (pelo empregado do patrão)/estão os dois no chão (de novo, de novo)/a ouço grita (de novo, de novo)/Mamãe está chorando muito (e não consegue se levantar)/suas mãos estão tremendo (e não consegue se levantar).
Um disco impressionante que coloca o dedo, com força, numa ferida que não cicatriza. Por isto mesmo não entrará nas paradas, será ignorado pelos que curtem o trivial variado. O nome do grupo foi inspirado no título de um clássico de um escritor afroamericano, Notes of a Native Son, de James Baldwin.