“O primeiro disco tinha uma relação mais introspectiva, de autoconhecimento, mais terapêutica, eu me descobrindo na música. A transição da Flaíra dançarina para me expressar através de minhas canções. De lá pra cá muitas coisas aconteceram, tanto neste meu processo de autoconhecimento, quanto no país. Acredito que tudo o que está em nossa volta a gente vai absorvendo, e também propondo, Está nesta rede de troca o tempo todo com o que acontece fora e dentro. Neste segundo disco tem uma Flaíra menos autocentrada e mais conectada nas questões externas que movem o país e o mundo, e isto acaba refletindo internamente, e as composições nascem disso”, diz Flaíra Ferro, analisando as diferenças entre seu disco de estreia, Cordões Umbilicais (2015), e Virada na Jiraya, disponível a partir de hoje nas plataformas digitais. Um disco que Flaira vem trabalhando desde o ano passado, do qual foram lançados clipes de três das faixas: Coisa Mais Bonita, canção e vídeo (censurado) sobre sexualidade feminina; Revólver, um frevo movido a eletrônica e Suporto Perder, com participação de Chico César (Flaira, retribuiu a gentileza cantando no novo disco de Chico César).
Novidade elogiada no canto brasileiro, além de compositora inspirada, o talento de Flaira Ferro como passista inovadora era sabido, sobretudo porque ela não se atém aos passos já sistematizados. A opção por cantar e compor surgiu de uma necessidade de expressão que a dança não permitia. E aflorou quando ela morou em São Paulo (de 2012 a 2016). Um processo de maturação silencioso, de autoconhecimento, de reconhecer as próprias deficiências, bloqueios de comunicação, morando numa megalópole longe a família.
“Paralelo a este processo de observação, trabalhando no Instituto Brincantes com Antonio Nóbrega, vi no trabalho dele tudo aquilo que me atravessava de alguma forma. Ele unia a dança, com o teatro, com o circo, a instrumentação. Nóbrega começou a me colocar como cantora. Fui ganhando confiança de estar segurando o microfone, para além da dança, da passista de frevo. Digamos que saí do armário e assumi este lugar meu de cantar, compor principalmente. Nunca tive desejo de ser cantora antes. O canto veio como consequência de expressar coisas que a dança e o movimento sozinhos não davam conta”.
Flaira é de primeira pessoa. Despachada, de dizer a que veio, do que gosta, ou o que lhe desgosta. Virada na Jiraya, além de título, é como abre o disco, soltando a voz, no rock and roll Faminta, que lembra a Rita Lee debochada e crítica dos anos 70: “Eu tenho fome/eu sou faminta/eu quero comer você/ eu quero comer a vida”. Se as letras são precisas, sem nada lugar comum, as melodias são toda assoviáveis, feito o iê-iê-iê Ótima, das mais radiofônicas do disco. A voz não está mais contida feito em Cordões Umbilicais, e ela concorda: Fui amadurecendo na prática, os shows foram me dando mais segurança, de me apropriar da minha voz de um jeito que eu pudesse me divertir. No primeiro disco, tinha uma coisa de muitos medos, de sair da zona de conforto”.
As canções pensadas para este projeto apontam, cada uma, para uma direção, influenciadas e comprometidas. Cada uma é um manifesto: “Na calada da noite/ os estudantes fazem o futuro amanhecer/quem aprendeu a ler e a escrever/sabe bem que analfabeto jamais voltará a ser”, dizem os versos iniciais de Estudantes, uma canção lenta. O único frevo do disco, Revólver, não escapou do engajamento. O refrão é um grito de incitação à luta: “Quero é ver você dizer que não vai ter mais frevo/eu quero é ver você dizer não tem frevo mais”. Flaira conta que se ressentia de um frevo que não se restringisse à época:
“Sentia falta de escutar frevos que trouxessem temáticas mais políticas, menos saudosistas. Sempre achei o frevo matéria-prima de muita transgressão, muito política, desde a origem do passo, da música também, que vemdos capoeiristas, da classe trabalhadora. Sempre vi o frevo por este viés político, e não via músicas que correspondessem. Vi algumas coisas, de China, com o Sheik Tosado, falando desta relação do frevo com o rock. Alceu Valença tem alguns frevos incríveis. Quando compus Revólver era mesmo o desejo de fazer esta ponte, a relação do frevo com esta política de resistência, aguerrida, combativa, provocativa”.
Virada na Jiraya traz 12 faixas, projeto independente, gravado entre Rio e São Paulo, produzido por Yuri Queiroga (com exceção da faixa Co
isa Mais Bonita, com produção de Pupillo). Além de Chico César, tem participações do pianista Amaro Freitas (em Maldita), e das compositoras Isaar, Ylana, Sofia Freire, Paula Bujes, Laís de Assis e Aishá Lourenço (em Germinar).