Kanye West e a arte de lançar um novo disco

Fãs esperaram ansiosos por Jesus Is King
JOSÉ TELES
Publicado em 29/10/2019 às 10:52
Fãs esperaram ansiosos por Jesus Is King Foto: Foto: Divulgação


Como quase tudo no mercado fonográfico, foram Os Beatles que inovaram no lançamento de discos. Em 1967, Sargent Pepper’s Lonely Heart’s Club Band não chegou simplesmente às lojas, antecedido de divulgação convencional. A EMI fez do lançamento um evento. As emissoras de rádio dos principais mercados fonográficos do mundo receberam o álbum com antecedência, mas só deveriam tocá-lo à meianoite de 26 de maio (nos EUA foi lançado em 2 de junho). À hora combinada, as rádios europeias interromperam suas programações e tocaram, na íntegra, o novo LP dos Beatles.

O rapper americano Kanye West nasceu uma década depois do lançamento de Sgt Pepper’s. Talvez nem saiba deste detalhe do trabalho, mas, assim como Os Beatles, não produz um disco e simplesmente o lança nas plataformas digitais. Jesus is King, o álbum que disparou na sexta-feira, 25 de outubro, teve diversos teasers (grosso modo, provocações) antes de ser liberado. Kanye West valeu-se do Twitter, onde tem 29,3 milhões de seguidores. Depois de adiamentos, West tuitou que o disco estaria disponível ao público à meia-noite da quinta-feira. O anzol foi lançado, os milhões de fãs ficaram à espera.

Uma hora mais tarde, ele tornou a tuitar: “Aos meus fãs obrigado por serem leais e pacientes. Estamos fazendo mixagens específicas em Everything You Need, Follow God & Water. Não vamos dormir até que o álbum esteja lançado”. Pela manhã da sexta, nada do disco. Nessa mesma manhã ele fez uma apresentação surpresa na estação Oculus, próxima ao novo World Trade Center, devidamente registrada e postada nas redes. Foi o antepasto para o ansiado prato principal que, finalmente, foi liberado nas plataformas de música para streaming, com 12 horas de atraso.

Tempo suficiente para o disco ser focalizado em milhares de blogs, sites, jornais online mundo afora. Ontem, segunda-feira, apenas no Youtube, o disco tinha sido acessado por 1.446.283 pessoas. Provavelmente teria mais ouvintes se, no ano passado, Kanye West não tivesse revelado sua admiração pelo presidente Donald Trump, que não é exatamente partidário da igualdade racial. Imediatamente à revelação, o artista perdeu quase dez milhões de seguidores no Twitter. Assim como Madonna, numa época ainda sem internet, trabalhava tão bem temas delicados da sociedade americana, como sexo e religião, revertendo as polêmicas a seu favor, Kanye West vai mais longe e, literalmente, atiça os que o amam, ou odeiam.

Não tem limites. Em época de polarização política, já fez uma analogia entre ele e Hitler, afirmando que era tão odiado quanto o führer nazista. Dias antes do lançamento de Jesus is King, numa entrevista para a Beats 1 (rádio da Apple), chutou a modéstia para a estratosfera: “Sou inquestionavelmente, inegavelmente, o maior artista da humanidade em todos os tempos”. As ações que envolvem a produção de Jesus is King são ensinamentos para quem pretende ter um trabalho amplamente comentado e, consequentemente, escutado.

West contou que pediu a alguns membros da sua equipe para não fazerem sexo durante a produção do disco. Paradoxalmente, revelou que foi viciado em pornografia desde criança, quando descobriu uma revista Playboy do pai dele. Consciente da farta ressonância de suas declarações, saiu-se com mais esta: “Nabucodonosor foi o rei da Babilônia, olhava para seu reino e dizia: ‘Fiz isto’. Soa meio parecido, certo? Eu subo no topo da montanha comentando sobre Yeezus e digo, fiz isto, eu sou um Deus”. Yeezus a que se referia era a turnê que empreenderia entre 2013 e 2014. Jesus is King foi lançado simultaneamente a um filme homônimo, realizado no deserto do Arizona.

JESUS

Jesus é Rei teve início quando Kanye West foi internado em 2016, durante a turnê Saint Pablo, quando passou a ler a Bíblia e anotar passagens do Livro Sagrado. Na entrevista à rádio Beats 1, comentou que já se achou o rei da cultura, mas mudara: “Agora eu estou deixando que saibam o que Jesus fez por mim. Já não sou mais um escravo, sou um filho. Um filho de Deus”. O álbum abre com um coro celestial, polifônico, de beat acelerado, instando a que se clame pelo Senhor: “Cante até que a força do Senhor desça sobre si/cante a cada hora/a cada minuto/ cada segundo/a cada milésimo de segundo”. Fecha com uma faixa curta, 49 segundos, de louvor, Jesus is Lord, uma oração, de versos econômicos: “Cada joelho deve dobrar-se/cada língua confessar-se/Jesus é o Senhor”.

Talvez haja uma certa dose de exagero quando Kanye West se proclama o maior artista de todos os tempos, mas não lhe falta talento. Jesus is King é inspiração e transpiração, e superprodução. O rapper não pega o caminho das pedras, das facilidades de estúdio, faz um disco com tecnologia e instrumentos convencionais. Na citada Jesus is Lord, a sonoridade sinfônica é produzida com tuba, trombone, trompete, sax, french horn, tumba tenor.

Cada faixa é recheada por samples de música gospel, do próprio Kanye West e nomes que não se imaginava que frequentassem o universo do rapper, Yoko Ono, por exemplo, com um trecho de sua We Are All Water. Saxofonista campeão da música de fundo de festinhas caretas, Kenny G é convidado em Use This Gospel. Ele é um entre vários convidados, e Kanye West um entre um time de produtores que trabalhou no álbum. Nomes carimbados feito Timbaland. Jesus Is King é, basicamente, uma missa moderna e requintada.

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