No começo dos anos 80, a TV Globo voltou a investir nos festivais de música popular. Coincidiu este retorno aos concursos musicais com uma nova safra de intérpretes e autores que surgia em Pernambuco. No MPB Shell 81, foram classificados para as eliminatórias Lenine e Zé Rocha, com Prova de Fogo; Lula Côrtes, com Canção da Chegada; Tempo Presente, de Fernando Filizola (do Quinteto Violado); Robertinho do Recife, em parceria com Jorge Mautner, com Encantador de Serpentes, e Accioly Neto, com No Nosso É Refresco. Os festivais antecipavam, em disco, as canções concorrentes.
Assim foi que Accioly Neto estreou em disco solo, pela RGE, em um compacto com duas músicas autorais. O disquinho trazia no lado B, No Nosso É Refresco, e no B Alguns Minutos no Céu. As coisas começaram a acontecer para Accioly Neto antes desses festivais. Depois de uma breve passagem como crooner em duas bandas cariocas, a Bulldog e a Big Som, ao participar de festivais pelo Brasil, em 1978, ele se destacou com Severina Cooper, no festival 1ª Cantoria da Música Nordestina. Severina Cooper foi gravada por Paulo Diniz.
Depois de um tempo com o grupo Acalanto, Accioly partiu para uma carreira solo que só seria encerrada com sua morte prematura em 29 de outubro de 2000. José Accioly Cavalcante Neto, pernambucano de Goiana, viveu apenas 50 anos, mas o suficiente para deixar uma extensa obra. Parte dela está espalhada por uma dezena de álbuns que lançou, e em discos dos muitos dos seus intérpretes. Muita coisa está no arquivo da família esperando sua hora. Uma boa porção da produção de Accioly Neto chegou ao disco Natureza Sonhadora – Tributo a Accioly Neto, álbum duplo, com 33 faixas, que será lançado hoje, no Cinema do Museu, na Fundaj, em Casa Forte, com a exibição do filme Leonardo Bastião – O Poeta Analfabeto, premiado curta de Jefferson Souza.
Quarta-feira, haverá lançamento na Passa Disco, no Espinheiro, (Rua da Hora, 345), com a exposição Asas, de Fernando Duarte. O tributo foi viabilizado por um edital do Funcultura e produzido por Tereza Accioly (viúva), Talitha Accioly (filha) e André Macambira. “A gente vinha pensando há alguns anos em fazer este projeto, inscrevemos três vezes no Funcultura, acho que pelas questões técnicas não era aprovado. Mas conseguimos a aprovação em 2017. Desde então, trabalhamos nele. A ideia sempre foi fazer um álbum duplo. Incluindo músicas que não são muito conhecidas, e as mais conhecidas. As músicas são de vários discos que ele gravou, algumas não foram gravadas por ele. A maioria, no entanto, foi.
O primeiro álbum que gravou, em 1981, Diabólica Trindade, está gravado na íntegra neste projeto. Do Forrock tem duas. Outras músicas foram tiradas de Meu Forró, que gravou mas faleceu antes de lançar”, esclarece Talitha. Natureza Sonhadora possivelmente não será um projeto sem sequência. Accioly Neto compôs cerca de 800 músicas, portanto, há muita coisa no ineditismo,confirma sua filha: “Tem muitas músicas inéditas, em cadernos, fitas, áudios passados pra CD. Também muita letra sem melodia, outras com melodias mas sem letras. Ele só teve duas parcerias póstumas. Uma com Xico Bizerra, outra com o carioca Edu Krieger”.
Paraíso das Hienas abre o disco 1 de Natureza Sonhadora, na voz de Zeca Baleiro. Ele é um dos 33 intérpretes que cantam a música de Accioly Neto nos dois discos do álbum. Uma seleção extremamente abrangente, que reúne gerações, estilos e cidades diferentes. Embora o tributo também seja fechado com uma cantora de fora, a fluminense Zelia Duncan, a maioria das vozes é de Pernambuco. Gente da MPB, do forró pé-de-serra, da MPB pós-tudo do coletivo Reverbo, este por si mesmo bastante eclético. Todo mundo atendeu ao chamado para entrar no projeto: “A gente fez uma lista de músicas e artistas, sugerimos músicas que achávamos que tinha a ver com determinado nome. A maioria foi aceita de cara. Alguns, porém, disseram que queriam cantar outras músicas. As vezes a música não fazia parte da lista que traçamos, então acabou que a composição que selecionamos não entrou no disco. A façanha que conseguimos, de ter de tanta gente participando, não se deve tanto ao nosso trabalho, mas à representatividade da música de Accioly Neto. Quem a gente procurou, participou. Inclusive gente de outro Estado, e nomes nacionais. Inclusive os mais jovens, que até conheciam a música, mas nem sabiam direito de quem era. A gente falava, e a pessoa dizia que topava. Foi muito legal este processo”, testemunha Talitha Accioly.
Na longa lista de participantes estão, entre outros, Almério (Este Moleque Não Vai Dar pra Nada), Raimundo Fagner (Casa Comigo), Maciel Melo (Desespero de Causa), Isadora Melo (Vontade), Mariana Aydar (Saudade da Boa), Silvério Pessoa (No Nosso é Refresco), Romero Ferro (Engano Seu), Encanto e Poesia (Avoante) e Flávio José (Canção da Saudade). Ponha-se entre estas participações as dos músicos que tocaram nas gravações, o que leva o projeto a aparentar mais um mutirão. Juliano Holanda, por exemplo, produziu e arranjou a citada Paraíso das Hienas, e tocou teclados e baixo. Martins tocou rabeca e Rapha B, bateria.
Arranjos e produções foram distribuídos por vários nomes, sendo os mais recorrentes os de Juliano Holanda, Julio César, Renato Bandeira. Yuri Queiroga, um dos mais requisitados produtores do país atualmente, produziu e arranjou Me Diz Amor (Elba Ramalho), Natureza Sonhadora (Ylana Queiroga) e Espumas ao Vento (Lucy Alves). Alguns dos intérpretes optaram por, eles mesmos, se produzirem, como foi o caso de Zé Manoel (está morando em São Paulo) que canta Que Nem Eu, acompanhando-se ao piano, com Sérgio Reze (bateria) e Fábio Sá (baixo). O irrequieto Lucas dos Prazeres experimentou em Maracatulelê, cantando e fazendo percussão, nesta música do LP Diabólica Trindade.
E aqui uma curiosidade: a música é assinada por Irene Acioli, irmã mais velha de Accioly Neto, que não está como autora apenas desta composição. Aparece, por exemplo, em um dos sucessos de Accioly Neto, Coisa Boa É Namorar (do álbum Forrock). “Irene é minha tia, está com 89 anos, era 20 anos mais velha do que meu pai. Acho que ele fez isto pra inscrever música em festival. Tem música assinada por minha mãe, que nem entrou neste projeto”, revela Talitha. O maestro Spok, encontrado em praticamente todo disco gravado em Pernambuco nos últimos 25 anos, não poderia estar fora de Natureza Sonhadora. Ele está com Flaira Ferro em Saideira (de Forrock), e músicos da Spokfrevo Orquestra – o guitarrista Renato Bandeira produziu; o baterista Augusto Silva fez o arranjo, e tocam na música com o contrabaixo de Hélio Silva, também da SFO.
OBRA
A discografia de Accioly Neto está fora de catálogo. Natural. As gravadoras não estão repondo discos, com exceções do supermedalhões e, mesmo assim, dando preferência a edições em vinil. A reposição geralmente é feita no formato digital. Nas plataformas digitais, encontra-se a coletânea popular da Polydisc, 20 Supersucessos. Mesmo que se confunda o intérprete com o autor, os sucessos de Accioly Neto continuam tocados e cantados, e muita gente sabe de cor xotes como Espumas ao Vento (“Sei que aí dentro ainda mora/um pedacinho de mim/um grande amor não se acaba assim/feito espumas ao vento); Me Dá Meu Coração (“Você dizia que me amava/e me queria/que jamais em sua vida/gostou d alguém assim”), para citar dois grandes hits.
Em 2020, quando o cantor completaria 70 anos, e será aniversário de 20 anos da morte, já está praticamente certo um doc, diz Talitha Accioly, e uma provável reedição de Diabólica Trindade pelo selo carioca Discobertas. Uma biografia não está descartada, especula Talitha, lembrando que no site oficial de Accioly Neto está disponível para download uma monografia sobre o artista, escrita por Eduardo Siqueira da Cunha