Os direitos autorais na web voltam a ser foco de discussão entre artistas, Governo e profissionais da música. Na manhã de ontem, o Ministério da Cultura disponibilizou para consulta pública duas Instruções Normativas (INs). Uma diz respeito à produção audiovisual e outra à gestão de música no ambiente digital. O texto estará disponível por 45 dias para no site www.culturadigital.br/gcdigital. As contribuições serão analisadas pela Diretoria de Direitos Intelectuais do Ministério e poderão ser incorporadas ao texto original.
O ponto mais polêmico da IN é o inciso IV de seu artigo 6º, que trata de plataformas de streaming, como YouTube, Spotify, Deezer e outros. Para o MinC, esses serviços envolvem execução pública da obra, tal qual emissoras de rádio e TV, o que os obrigaria a pagar ao Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) pelo uso das músicas.
A tese do MinC, porém, é rebatida por parte do mercado, principalmente gravadoras e players. Para esses, não há execução pública quando o streaming é interativo: os casos em que os usuários deixam de ser passivos e podem escolher que músicas ouvir.
Luciana Pegorer, diretora executiva da Associação Brasileira da Música Independente (ABMI), por exemplo, é uma que discorda da definição proposta pelo governo. “Uma execução pública acontece quando as pessoas podem ver ou ouvir uma mesma programação, ao mesmo tempo, de qualquer lugar em que estiverem. É assim com rádio e com TV, e também com a rádio digital. Mas não é assim com o streaming interativo. Nesse caso, o serviço é montado a partir das preferências de uma pessoa, assim como ocorre na venda de discos”, afirma Luciana. “O mercado já estava caminhando para uma regulação com acordos entre os envolvidos. Mas agora, com a entrada do governo, não sabemos o que vai acontecer”, receia.
Em nota, Lenine comentou o assunto com entusiasmo: “Total solidariedade ao Ministério da Cultura, que está propondo essa discussão pública sobre os negócios digitais”. O músico é integrante do grupo Procure Saber, articulado pela produtora Paula Lavigne e que inclui Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros.
Para o cantor e compositor pernambucano China, a proposta do Governo é uma atualização necessária. “É lógico que a lei tem que ser revista. Como é que a gente vai tratar de uma nova tecnologia, de um novo jeito de ouvir música baseando-se numa lei de 20, 30 anos atrás?”, argumenta. “Os músicos independentes continuam reféns de um esquema como de gravadora. A Banda Mais Bonita da Cidade gravou uma clipe de Terminei Indo, composição minha. Teve 700 mil acessos e até hoje não recebi um centavo. E claro que não é a banda que tem que me pagar. Eu comparo o artista ao professor, que ensina a todo mundo e é o último a receber”, afirma.
Assim como China, Alcymar Monteiro tem sua obra disponível nas plataformas de streaming. Mas possui uma visão diferente: “Tudo que venha a somar com direitos autorais eu bato palmas. Mas essa atitude de pegar uma plataforma que está surgindo e pegar um órgão como o Ecad, que tem feito tudo errado, cobrado direito autoral aleatoriamente, é um erro. O Ecad não tem nem uma fórmula básica de como calcular o direito autoral, não tem tem sequer meio de cobrar direito. Digo isso porque faço 100 shows por ano e aparecem cinco, seis”, critica.
Nesse impasse, o forrozeiro propõe um caminho. “Mesmo com todo o tamanho da internet e das redes sociais, é uma coisa que está começando agora. Acho que deveria ser criado uma outra forma uma plataforma, para começar isso do zero porque tudo que vem do Ecad é cheio de dúvida. Acho que é um erro estar atrelado a um órgão que não protege o autor. É preciso reunir os grandes compositores, as associações e todos têm que ter ouvidos”, completa.
Consumidor não será afetado
Nos site do Ministério da Cultura, sobraram comentários criticando os impostos e um possível aumento das mensalidades do serviço. Especialista em Gestão de Negócios e autor do livro Música Ltda: o negócio da música para empreendedores, Leonardo Salazar diz que no entanto o bolso do consumidor não sofrerá com as possíveis mudanças.
“Para o Ecad, o contribuinte é quem está oferecendo a música. Essa mudança afeta apenas os players. Provavelmente será uma taxa de 2,5% do faturamento. As emissoras de televisão e mesmo o YouTube já pagam essa taxa”, observa Salazar. “Na economia, a música é considerado um bem supérfluo. Toda vez que se configura um cenário de baixo poder aquisitivo, de crise, ele diminui de consumo. Se o preço das assinaturas aumentar, o consumidor pode passar a consumir só a parte gratuita. Ainda há o risco dele migrar e voltar aos downloads ou então ouvir de graça no YouTube. Hoje, 67% das pessoas que entram no YouTube já entram para ouvir música. Então deve diminuir a taxa de lucro, e não repassar pro bolso do consumidor”, afirma.
Insegurança jurídica atrapalha
Dos maiores players internacionais que atuam no Brasil, apenas Spotify e Apple Music pagam ao Ecad pelo direito de execução pública. O Google também pagava pelas músicas executadas no YouTube, mas suspendeu os repasses e entrou com uma ação na Justiça exatamente para esclarecer que direitos são devidos pelo serviço. Outro que suspendeu o pagamento foi o Deezer. Essa insegurança jurídica atrapalha artistas, players e gravadoras.
As plataformas seguem repassando a gravadoras e editoras musicais os direitos de reprodução das músicas. Em termos legais, trata-se do mesmo direito que, no mundo físico, é cobrado pelas vendas de CDs. Sobre as dúvidas acerca do streaming interativo, o presidente da Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD) Paulo Rosa lembra que as receitas ainda são “muito pequenas para remunerar as dezenas de milhões de gravações disponibilizadas”, mas destaca seu potencial de crescimento. Enquanto isso não ocorre, acumulam-se críticas contra as gravadoras.
“No cenário em que os serviços de streaming interativo não paguem direito de execução pública, a concentração de lucro ficará nas mãos das gravadoras como era na época do CD. Elas estão, inclusive, correndo para comprar os players e acabar com a mediação entre gravadoras e consumidor”, afirma Daniel Campello Queiroz, advogado que representa artistas como Zeca Pagodinho e MV Bill. “O problema não está nos players. Eles querem pagar, mas querem saber para quem pagar corretamente”, diz o advogado.
Nas regras propostas pelo governo, as duas modalidades de arrecadação (execução pública e reprodução) devem ser aplicadas no streaming interativo. Os valores são calculados conforme os contratos entre players, gravadoras e editoras musicais, e também pelo número de vezes que uma música é tocada. Depois são divididos com artistas.
O músico Silvério Pessoa mantém uma opinião diferente e ponderada. “Quanto mais a minha música for distribuída, difundida e mesmo pirateada é melhor. É muito difícil manter um mercado, digamos, independente. Ano passado fiquei muito feliz quando vi uma banca vendendo meu CD em MP3. Eu sou favorável, mas defender isso juridicamente é coisa de uma classe artística que ainda continua envolvida com esse sistema de cobrança medieval. Não vou defender com unhas e dentes essa proposta pois, pra esfera do mercado que eu pertenço, quanto mais divulgação melhor”.