Segunda-feira, Patrícia Vasconcelos, viúva do percussionista Naná Vasconcelos, embarca, com a filha Luz Morena, para os Estados Unidos. Ela vai morar em Nova Iorque. Está indo para lá por causa dele, para melhor cuidar da extensa obra que ele deixou, a maioria produzida no exterior. Há 17 anos, Naná Vasconcelos fez o inverso. Trocou Nova Iorque pelo Recife por causa de Patrícia. Veio para casar. Namoravam há quatro anos. Um relacionamento que não foi inicialmente bem recebido. Patrícia é filha de um irmão de Naná, sua sobrinha, portanto. Ela sabia que ele era uma pessoa importante na música, mas não se ligava muito nisto. Recém formada em engenharia, seu interesse era com as ciência exatas, até o dia em que conheceu o tio que vivia nos Estados Unidos.
“Numa das vezes que ele veio à minha casa, eu estava no quarto lendo. Minha mãe bateu na porta avisando que ele estava chegando. Ele me convidou pra dar uma volta com ele em Sítio Novo, eu morava lá. Depois ele me pediu pra deixar ele no hotel. Ficamos conversando na frente do hotel, em Boa Viagem. A coisa foi evoluindo, espontânea, Foi se transformando numa coisa que senti que era diferente o sentimento. Ele perguntou se podia ligar pra mim. Ligava e mandava cartas. Fui vendo que o sentimento era uma coisa muito forte. Então ele ele deixou tudo lá e veio morar aqui. Veio por causa de mim. Ele estava em evidência lá, e corria o risco de ser desvalorizado morando aqui. Mas veio”, conta Patrícia. Ela confessa que não foi fácil no começo: “Teve um pouco de problema, mas como Naná era uma pessoa muito responsável, digno, a gente foi absorvendo isso”.
Depois de casada com Naná, Patrícia continuou trabalhando na sua profissão, até que, nove anos atrás, tornou-se empresária do marido, e passou a conhecer mais a fundo o universo da música, e a entender mais a complexidade da obra do percussionista. A esta obra ela se dedica em tempo integral desde a sua morte, em março do ano passado. Um trabalho hercúleo feito em ritmo de formiguinha.
A obra de Naná Vasconcelos é um dos motivos para ela se mudar para Nova Iorque: “Eu vou porque Luz quer fazer moda lá, e porque trabalhar a obra de Naná lá é mais fácil. Naná morou vinte e sete anos lá, então 70% do que ele fez foi lá fora. Luz é cidadã americana, herdou a cidadania dele, eu consegui o green card. Na UTI, ele disse a Luz que fosse realizar o sonho dela, estudar nos Estados Unidos. Talvez ela comece história dela lá na moda. Pra ela tem este significado, pra mim vai ser uma forma de manter o trabalho dele. Estou primeiro indo pras coisa mais fáceis. Fiz um mapeamento de editoras, contratos, estou descobrindo as coisas e falando diretamente com gravadoras, editoras,” explica Patrícia, mostrando o mais recente disco de Naná, uma coletânea lançada na Itália, com selo da ECM, Naná Vasconcelos - The Story Teller, com Jan Garbarek, Egberto Gismonti, Pat Metheny e Paul Motian.
O legado de Naná Vasconcelos além de se estender por Noruega, Itália, França, Estados Unidos, não apenas em discos solo, mas também nas co-participações e inúmeras trilhas, contém ainda a obra brasileira do artista que, só depois de sua volta ao Brasil gravou nove discos, além de aceitar convites para tocar em dezenas de gravações. Afora isso, no acervo que deixou em casa há muitas fitas de rolo, cujo conteúdo Patrícia diz que não teve tempo ainda de conhecer: “Ele não parava de produzir, e ainda tem discos inéditos, como o que fez com Fagner e Manassés. Achei a fita, só que nem um nem outro, me procurou sobre este disco. Há outro com Yamandú Costa, que nunca foi lançado, é uma obra muito grande, e complexa”.
MARACATU
Patrícia acha que Naná foi mais prestigiado aqui do que sua obra, sobretudo em Pernambuco, onde a maioria o conhecia como o maestro das nações de maracatu, na abertura do Carnaval do Recife. Não aparenta frustração por não ter aprovado o projeto do disco póstumo de Naná, que não passou no edital do Natura Musical. É um disco de poucas faixas, porém longas, músicas que ele compôs já debilitado. Algumas trabalhadas pelo maestro Jardim, outra por Egberto Gismonti. Mas não esconde a satisfação de saber que o Carnaval vai começar novamente com as nações de maracatu, regidas durante 15 anos por Naná Vasconcelos:
“Até antecipei minha viagem para antes do Carnaval, porque não estava acreditando mais que iria acontecer. Já foi feito reunião com os mestres, estão desenhando a parte final. As pessoas de todo Brasil perguntam muito, jornalistas do mundo todo, perguntam se vai ter. Os mestres não aceitam outro regente. Eles vieram aqui, conversaram comigo, querem continuar, mas a gente não quer que outra pessoa comande. Naná era a voz dele, nesta questão de ficar. Se todos artistas fizessem o que Naná fez a cultura popular não estaria em segundo plano. Naná não pegou só pra tocar no carnaval, passou o ano todo valorizando, abriu portas pra eles. O trabalho dele foi tão imenso, eu divido por células. Tem por exemplo a célula jazz. O maracatu foi uma das células de Naná. Me disseram que vão fazer uma estátua dele para ser colocada no Marco Zero”.
Ela diz que em reunião com a prefeitura pediu que o lugar dele não fosse substituído, que continuasse com a mesma sintonia, com mais autonomia aos mestres: “Naná preparou os mestres, e o evento pode continuar com os maracatus, o grupo Voz Nagô. Se tiver homenagem eu volto para assistir a homenagem. Eles estavam decidindo se haveria convidados. Pode não permanecer, mas em ter este ano, eu acho que já foi uma vitória. Tudo vai depender, na minha opinião, do sucesso do evento. talvez se esta junção dos mestre regendo, isto depende de muita coisa. Da coordenação entre eles. Em dando certo o evento tende a permanecer. Tem ai uma capa de um jornal de Jerusalém, ele regendo os maracatus, viro um evento de projeção internacional. Este ano vão ser 15 nações. Sugeri que o roteiro musical fosse feito com músicas dele, que ninguém conhece”.
Na espaçosa e confortável casa onde mora, no Rosarinho, as lembranças de Naná Vasconcelos permeiam o ambiente. São troféus, discos, pôsteres, muitas fotos. Há um espaço reservado para os instrumentos, para as roupas que usavam em apresentações, e na abertura do Carnaval, seus discos. Patrícia estendeu as lembranças para a própria pele. Tatuou uma estrela igual a do tapete que ela usava no palco, outra com o nome do marido e da filha, mais um pequeno berimbau ao lado do qual está a rubrica de Naná. No anular usa duas alianças. A casa já começa a ser assediada empreiteiras. Querem um prédio no lugar, batizado com o nome do músico. Ela diz que não lhe interessa isso. Quer outro destino à casa:
“Tenho ideia de fazer ocupações. A gente monta o set de Naná, imprime uma fotos bem legais, faz uma semana de palestra, com um show que tenha a ver. Minha casa se fosse na Alemanha já teria se transformada num centro de visitas, para escolas, músicos, turistas. É uma referencia dele aqui. Por isso não vou fazer nada com ela. Vou manter, o custo dela é caro. mas não tenho coragem de fazer nada. Já veio construtora oferecendo compra. Com esta casa quero fazer uma fundação”. Durante a entrevista, no final da tarde, na pérgula da piscina, onde Naná costumava receber os amigos, tranquila, Patrícia diz que, de Naná, além das muitas lembranças, só vai levar na bagagem uma echarpe, das muitas que ele usava no palco.