Banco Central: onde a credibilidade é tudo

Denúncias de Joesley contra Temer reacenderam os debates sobre a independência da atuação do Banco Central brasileiro
Luiza Freitas
Publicado em 28/05/2017 às 12:17
Denúncias de Joesley contra Temer reacenderam os debates sobre a independência da atuação do Banco Central brasileiro Foto: Foto: Agência Brasil


Eram cerca de 14h30 do dia 12 de abril quando o economista israelo-brasileiro Ilan Goldfajn chegou ao oitavo andar do prédio-sede do Banco Central do Brasil. Junto a nove diretores da instituição, dirigiu-se à mesa de madeira maciça posta no meio da sala e tomou a cadeira principal de capitonê em couro preto, reservada a ele, o presidente do Bacen. A 206ª reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) havia começado no dia anterior, quando o grupo revisara indicadores econômicos como inflação e balanço de pagamentos. Naquela tarde eles voltavam ao local para definir, com base nos dados vistos, como ficaria a taxa básica de juros, conhecida como Selic.

 

 

Com um Portinari de quase cinco metros de altura ao seu lado direito e uma ampla varanda com vista panorâmica para Brasília à esquerda, ele e todos os presentes votaram, de forma unânime, pela redução da taxa em um ponto percentual. Passados 35 dias dessa cena, a divulgação de uma conversa do presidente Michel Temer e o empresário da JBS Joesley Batista, gravada no dia 7 de março no Palácio do Jaburu, a sete quilômetros dali, por algum momento colocou em dúvida a lisura com a qual o grupo liderado por Goldfajn atua.

Na denúncia feita pelo sócio da maior produtora de proteína animal do mundo, o comandante do executivo federal teria antecipado a queda da Selic. Após a divulgação dos áudios do encontro realizado entre eles em março, não fica claro se a fala de Temer é uma especulação pessoal ou uma afirmação taxativa. O fato é que o número se confirmou, gerando, no mínimo, um desconforto em relação à liberdade de atuação do Bacen. A instituição foi estruturada nos moldes de um banco central independente, característica que deveria criar uma proteção contra interferências políticas. Ciente da gravidade da suposta “dica”, a instituição se apressou a divulgar uma nota garantindo que as decisões são tomadas apenas durante as reuniões e que, por isso, “não existe possibilidade de antecipação da decisão a qualquer agente, público ou privado”.

Para o professor do Laboratório de Finanças/ Fundação Instituto de Administração (Labifin/Fia) Alexandre Cabral, o mercado não entendeu a fala de Temer como uma antecipação da decisão do Copom. “Já era praticamente um consenso a decisão de reduzir [A SELIC] em um ponto percentual. Os próprios jornais já falavam disso. Seria estranho se todos estivessem apostando em um [ponto percentual] e dessem um e meio, por exemplo”, pondera. Cabral destaca ainda que, caso houvesse a informação privilegiada, a JBS não teria lucrado com ela, já que todo o mercado negociava apostando no ajuste mais tarde confirmado pelo comitê.

O Copom realiza oito reuniões ordinárias por ano que representam oito oportunidades, no mínimo, de alteração da Selic e direcionamento da economia. Quando a inflação está alta, o Banco Central eleva a Selic. A lógica é que, com o crédito mais caro, as pessoas passem a comprar menos e, com vendas em baixa, os preços voltem a cair. Com a inflação voltando ao controle e diante da intenção de estimular o consumo, o BC estabeleceu o processo inverso com a série de reduções iniciadas em outubro do ano passado. Há quatro anos não havia queda. Para além dos impactos no bolso da população, a variação dos juros determina comportamentos no mercado financeiro. Com a Selic em alta, os títulos da dívida pública se tornam mais atrativos que outros investimentos. Ao promover a redução, é como se o Bacen estivesse liberando dinheiro da renda fixa de volta para o mercado, a Bolsa de Valores.

Empresa de capital aberto, a JBS era um blue chip (termo usado para se referir às ações de primeira linha) da Bovespa. Antes do escândalo, seu valor de mercado já sofreu prejuízo de R$ 8,1 bilhões e a empresa ainda responde a cinco processos administrativos da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) – órgão responsável por fiscalizar a atuação do mercado de valores – que apuram se a empresa recebeu informações privilegiadas.

Não foi a primeira vez que o BC esteve envolvido em uma situação de mal estar por questões políticas. No fim da gestão de Dilma Rousseff, sua relação com o então presidente do BC Alexandre Tombini e o teor dos seus encontros foi por vezes questionado. O economista chegou a declarar em plena Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado que “ingerência não, mas pressão política sempre há. Em algumas reuniões mais do que outras, pressões de todos os lados”, afirmou. Antes, em 2003, nos primeiros meses do primeiro mandato do ex-presidente Lula, seu vice, José Alencar, protagonizou cenas constrangedora. Às vésperas de uma reunião do Copom, fez um discurso público e virulento em que exigia a redução da Selic. O agravante, naquela situação, é que Lula havia escolhido para a presidência do BC Henrique Meirelles – que hoje responde pelo Ministério da Fazenda – como uma demonstração ao mercado financeiro de sua visão mais liberal e menos intervencionista.

 

 

Diante dessas situações, a estrutura independente – e não autônoma – do BC brasileiro chegou a entrar em debate nas eleições de 2014. A defesa da autonomia da autarquia (classificação que o Bacen recebe hoje) está atualmente na lista de pautas para ser analisada pelo Senado, como o Projeto de Lei nº 102/2007 e aguarda análise da CAE desde março deste ano, sob relatoria do pernambucano Amando Monteiro (PTB). Na prática, a nova estruturação do banco traria mandatos estáveis para sua diretoria, estabelecendo critérios específicos para a retirada de seus gestores, evitando, por exemplo, que a presidência mudasse de acordo com a vontade do poder executivo. Na teoria, isso representaria menor interferência política sobre a autoridade monetária.

É o que acontece nos Estados Unidos, por exemplo. O Fed (Federal Reserve, banco central de lá), uma das instituições financeiras com maior credibilidade no mundo, é independente e autônomo. Com 103 anos de história – o brasileiro tem 53 –, seus presidentes atravessaram mandatos presidenciais de orientações políticas opostas e sempre se mostraram pessoas discretas, que raramente apareciam em público. Um dos mais célebres dirigentes do Fed, Alan Greenspan, por exemplo, assumiu o cargo no mandato de Reagan, onde ficou até George W. Bush (tento o Bush pai e Bill Clinton no meio). Chegou a ser conhecido em seu país como “O Grinch”, uma referência ao personagem de um livro infantil que é mau humorado e pouco sociável. A atual presidente, Janet Yellen, por exemplo, foi classificada pela Forbes como a segunda mulher mais poderosa do mundo – atrás apenas da chanceler alemã Angela Merkel –, mas seu rosto é pouco conhecido e poucas vezes aparece em público.

Inércia inflacionária

Mas, para o integrante do Conselho Federal de Economia (Cofecon) e professor de economia da Universidade de Brasília (UNB), Roberto Piscitelli, a discussão não deve ficar apenas no mérito da independência ou autonomia do BC. Ele questiona a tradição do Copom e da própria cultura da política econômica brasileira de usar os juros como instrumento central de controle dos preços. “Existe uma dose de inércia inflacionária, reajustes institucionais que perpetuam a inflação. Quem disse que todo ano mensalidade de colégio, plano de saúde e remédio tem que sofrer reajuste?”, questiona. Para ele, mais que a relação que o Bacen tem com o governo em exercício, é preciso que haja credibilidade não só do mercado financeiro, mas de toda a sociedade sobre suas decisões. E que a cada 40 dias, aquele grupo seleto aproveite o conforto de suas poltronas sob a tarde do planalto central para decidir o que for melhor para o País.

 

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