Cena 1: A sede da Pitombeira, a quase septuagenária troça-símbolo do Carnaval olindense, é pequena, apertada, calorenta. Ouve-se música vigorosa, passistas alternando a ponta do pé com o calcanhar. Impávido, um colosso no frevo – aniversariante do dia 9 de fevereiro –, lá está ele: calça branca bem engomada, relógio dourado no pulso e batuta na mão, regendo aquela alegria.
Cena 2: Um mar de gente usando cores que se alternam – ora verde, ora preto – percorre as ruas do Recife, também sob o ditame do frevo. Enxugando o suor com um lenço, coordenando os músicos, espalhando uns sorrisos, bom humor na veia, ele ajusta os clarins, faz o naipe de metais tocar lindamente, põe em delírio os foliões do Amantes de Glória.
Cena 3: Salão de clube recifense, louvação aos carnavais do passado, frevo de bloco fazendo pés se arrastarem no tom da noite. Ele é o convidado do Bloco da Saudade: com apito pendurado no pescoço, blusa colorida meio apertada, bota gás na festa e faz com que o frevo de rua levante o povo no salão.
Nas três cenas descritas acima, José Bezerra da Silva é protagonista numa festa em que, nem sempre, há como um ocupante para o papel principal. Ele é maestro Lessa, figura hoje onipresente no Carnaval de Pernambuco. “Quando era jovem, gostava de bater uma bolinha. A turma botou o apelido de Lessa, um goleiro que jogava no América. Pronto, pegou”, conta o músico. A idade? “Uns 75, 76, por aí.” E emenda logo: “Deus dá a idade. A velhice quem faz é a pessoa”. “Se a gente se trata, se cuida, não se despreza... não envelhece, não,” ensina o maestro.
Pernambucano de Nazaré da Mata, nascido no Engenho Japaranduba, filho de “agricultor nato”, Lessa ainda era chamado de José quando topou com a música, lá pelos seus 16 anos. Começou com o trombone de pisto (ou trombone de marcha), passou para o trombone de vara. O princípio foi num dos emblemas entre as bandas de música de Pernambuco e do Brasil: a Sociedade Musical Euterpina Juvenil Nazarena, a famosa Capa Bode, fundada em 1888, em Nazaré da Mata – Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2010.
“Quando eu ainda militava na Capa Bode, comecei a tocar no Camelo, de Vitória de Santo Antão”, deu-se aí o primeiro passo de Lessa para dentro do Carnaval de Pernambuco. E sem saída.
Os primeiros compromissos do Carnaval de 2015 começaram ainda em setembro de 2014, com os ensaios da Pitombeira. A relação de blocos que contam com a batuta de Lessa é extensa: Escuta Levino, Mulher na Vara, Tá maluco, A Bolsinha, Já que Tá dentro Deixe, Cata Corno... E também o Amantes de Glória, onde já toca a orquestra há quatro anos. “Depende da situação financeira da troça, mas costumo a trabalhar com 20, 23 músicos”, revela. Vez por outra, não resiste, assume o trombone.
LOUVORES
“Lessa, tu és o cão.” A frase, dita pelo maestro Duda – outro grande do frevo –, é revelada pelo regente que recebeu, feliz, o elogio. Talento asseverado por outro símbolo do ritmo, o compositor Getúlio Cavalcanti, gente que sabe quem o que diz: “Ele é excelente, principalmente no frevo de rua. Faz questão de trabalhar com músicos bons. É muito competente”.
“A turma fica aí inventando. Eu toco é o frevo de Pernambuco”, diz Lessa, passando a receita. Pedreiro aposentado, trabalhou também como vigilante. “Fui vivo. Antes de procurar a música, procurei trabalhar.” Dona Carminha, mulher com quem se casou há 53 anos e com a qual teve nove filhos, é a tesoureira de Lessa. “Ela aguenta a minha cachaça e eu aguento a dela.”
O maestro garante: toca de cor, sem olhar para partituras, mais de 40 frevos de rua. Um mestre? “Levino Ferreira. É o Luiz Gonzaga do frevo.” O amigo, entre os mestres atuais, é Ademir Araújo, o maestro Formiga.
O frevo já levou Lessa à Bélgica, França e Holanda. “Já voei mais de 10 vezes de avião. Um matuto como eu, saído de Nazaré? Sou um cara satisfeito, realizado.”
Sobre o futuro do ritmo maior de Pernambuco, o aniversariante de hoje, o maestro revela descrença: “Na pisada em que está, vai se acabar. As orquestras de chão estão sumindo. Só tem Lessa e Oséas. Está muito difícil”, garante. “Depois que os órgãos públicos entraram nesse meio, acabou-se o Carnaval.”
Para aguentar a pisada até a Quarta-Feira, sem pressa, o segredo: “Bebo muita água. E cerveja todos os dias”. A conversa é encerrada na base da pura filosofia do maestro Lessa. “Músico é feito jogador de futebol: tem que querer fazer bem feito. Tem que ter amor pela arte. E música é a minha arte.”