Estudo revela impactos da caça na Amazônia no século 20

O estudo revelou que os impactos da caça levaram ao colapso as populações de algumas espécies aquáticas como o peixe-boi
Estadão Conteúdo
Publicado em 13/10/2016 às 16:25
O estudo revelou que os impactos da caça levaram ao colapso as populações de algumas espécies aquáticas como o peixe-boi Foto: Foto: NELSON ALMEIDA / AFP


Um novo estudo liderado por cientistas brasileiros revela pela primeira vez os impactos da caça comercial de animais na Amazônia durante o século 20. O estudo, publicado nesta quarta-feira (12) na revista Sicence Advances, teve base em uma compilação inédita de registros comerciais sobre a caça - que só foi declarada ilegal no Brasil em 1967.

O estudo revelou que os impactos da caça levaram ao colapso as populações de algumas espécies aquáticas como a ariranha, o peixe-boi e o jacaré-açu. Já os animais terrestres, embora tenham sido alvo da caça, sofreram menos impactos e muitas espécies sobreviveram à carnificina.

Os cientistas também descobriram que dois picos de caça ocorreram no século 20 - o primeiro entre as décadas de 1930 e 1940 e o segundo ao longo da década de 1960. Os dois períodos coincidem com o aumento do preço das peles no mercado mundial e, consequentemente, com o avanço da demanda por peles e couros silvestres.

Os autores fazem um alerta: os fatores que deram às espécies terrestres uma alta capacidade de recuperação, mesmo no apogeu da caça, tendem a entrar em colapso quando a floresta é desmatada ou fragmentada - especialmente pela construção de estradas.

Os pesquisadores analisaram declarações de carga de navios a vapor, registros portuários e documentos de exportação obtidos nos Estados do Amazonas, do Acre, de Rondônia e de Roraima. A análise indica que, entre 1904 e 1969, mais de 23 milhões de mamíferos e répteis selvagens foram caçados para a extração de suas peles. 

De acordo com o autor principal do estudo, André Antunes, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), apenas entre as décadas de 1930 e 1960, as 11 principais espécies exploradas comercialmente nos quatro Estados geraram cerca de US$ 500 milhões, reajustados para os valores de 2015.

"O que mais nos chamou a atenção é que, embora as peles tivessem alto preço nos dois períodos de pico, na década de 1960 encontramos muito menos registros do comércio de animais aquáticos, indicando que eles já haviam sido dizimados. Os animais terrestres não tiveram um declínio tão acentuado", disse Antunes à reportagem.

Antunes explica que, no fim do século 19, pelo menos meio milhão de colonos foram atraídos para a região amazônica pelo ciclo de extração de borracha. Com a competição das plantações da Malásia, os preços da borracha despencaram a partir de 1912, causando um colapso na produção brasileira. 

"Com o colapso dessa atividade econômica, o comércio de peles e couros cresceu vertiginosamente na Amazônia e persistiu pelo menos até o início da década de 1970, quando a legislação que proíbe a caça já estava vigente", disse.

Refúgios. A principal hipótese para explicar o maior impacto nos animais aquáticos, de acordo com Antunes, é que os rios os tornavam mais acessíveis aos caçadores, deixando-os mais vulneráveis. 

"As áreas alagáveis correspondem a cerca de 12% da Amazônia central e ocidental e a maior parte das habitações humanas estão concentradas ali. Um caçador com uma canoa pode percorrer centenas de quilômetros e carregar muito mais carga que um caçador que tentasse se aventurar pela terra firme. Por isso as espécies aquáticas sofreram muito mais impacto", explicou.

Essa evidência de vulnerabilidade aumentada pelo acesso fluvial, segundo Antunes, é o aspecto mais importante do estudo, por ter implicações para o manejo da fauna amazônica na atualidade.

De acordo com ele, os animais aquáticos têm poucos refúgios disponíveis e ficam praticamente encurralados pela pressão da caça. Já os animais que vivem em terra firme têm grandes áreas de refúgio - por causa do difícil acesso à floresta - de onde saem depois para povoar regiões próximas às comunidades humanas.

"A floresta tem uma alta resiliência justamente por causa dessa limitação do acesso. Quando olhamos a Amazônia hoje, vemos a floresta toda cortada por estradas. Essas estradas se ramificam em vicinais, que por sua vez são cortadas trilhas. Essa rede abre o acesso ao interior da floresta, reduzindo os refúgios e levando o mecanismo de resiliência da floresta ao colapso", explicou.

Impactos

Segundo o estudo, entre as peles e couros mais comercializados no século 20 estavam as de espécies como onça-pintada, maracajá-açu, maracajá-peludo, ariranha, lontra, queixada, caititu, veado-vermelho, capivara, peixe-boi, anta, cutia, jacaré-açu, jacaré-tinga, iguana, sucuri, jiboia, jacuraru e jacuruxi.

A pesquisa mostra que, entre 1904 e 1969, mais de 4,4 milhões de espécimes de jacaré-açu foram mortos. Nos cinco últimos anos do período, a caça caiu 92% em relação ao pico, sugerindo um declínio da população. 

No mesmo período, foram mortos mais de 110 mil peixes-boi e mais de 386 mil ariranhas, com redução de 91% e 88%, respectivamente em relação ao pico. Também foram mortos quase 400 mil capivaras, que são animais parcialmente aquáticos, com redução de 75% em relação ao pico da caça.

Entre as espécies terrestres, embora o número de animais caçados seja grande, o impacto nas populações foi menor. Foram mortos mais de 5,4 milhões de catetos, mas, nos cinco últimos anos do período a caça cresceu, indicando uma maior resiliência do ecossistema. O mesmo ocorreu com o veado-mateiro: mais de 4 milhões foram mortos, mas o comércio cresceu 16% no fim do período.

Além de Antunes, que atualmente é especialista em fauna da Wildlife Conservations Society Brasil (WCS), participaram do estudo Fábio Rohe, também pelo Inpa, Rachel Fewster, da Universidade de Auckland (Nova Zelândia), Eduardo Venticinque, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Carlos Peres, da Universidade East Anglia (Reino Unido), Taal Levi, da Universidade do Oregon (Estados Unidos), e Glenn Sheppard, do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém.

 

 

 

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