Nenhum agente do estado foi responsabilizado, seja na esfera civil, criminal ou administrativa pelos 105 casos de tortura feitos nos presídios brasileiros. As ocorrências, praticadas entre os anos de 2005 e 2016, foram analisadas e acompanhadas pela Pastoral Carcerária Nacional, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
As informações, publicadas na última quinta-feira (20), fazem parte do relatório Tortura e Encarceramento em Massa no Brasil, estudo da Pastoral Carcerária feito em 47 municípios de 16 estados e no Distrito Federal, com o apoio da Oak Foundation e do Fundo Brasil de Direitos Humanos, com a contribuição do Fundo de Fomento à Pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Mackpesquisa). Todos os casos analisados foram denunciados às autoridades pela pastoral.
“Talvez um dos dados mais ilustrativo e emblemático desta pesquisa se refere ao fato de que em nenhum dos 105 casos analisados, e encaminhados para diversas autoridades, houve até o momento qualquer responsabilização de um agente público ou do próprio Estado, seja na esfera civil, criminal ou administrativa. Tampouco foi instaurada qualquer ação penal para apuração de crime de tortura ou de qualquer outro tipo penal relacionado (abuso de autoridade, lesões corporais, maus-tratos, etc), nem foi proposta qualquer ação indenizatória em favor das vítimas”, destaca o relatório.
De acordo com o documento, em apenas um caso, um servidor foi administrativamente responsabilizado, mas não pela prática de tortura, mas pelo fato de ter descumprido normas internas que determinavam o encaminhamento imediato da vítima para a execução de exame de corpo de delito. A pena aplicada foi uma repreensão por escrito.
O relatório mostra também que em apenas 22% dos casos houve instauração de inquérito policial e em 3% das ocorrências, ação civil pública. “Em 20% dos casos, nenhum procedimento foi instaurado ou informado, o que significa uma ocorrência significativa de negligência ou déficit de transparência por parte das instituições acionadas”, ressalta o documento.
O estudo destaca que em apenas 48 das 105 ocorrências denunciadas as vítimas foram ouvidas no decorrer da apuração. Em 15 desses casos, a oitiva foi feita à Administração Penitenciária. “Chega-se à conclusão que em apenas 31% das ocorrências analisadas as vítimas foram ouvidas por defensores, promotores ou juízes”, diz o texto.
“Trata-se de um dado extremamente preocupante, uma vez que sem o contato direto com a vítima ou o grupo afetado, as chances de real compreensão e apuração da denúncia tornam-se virtualmente nulas, pois o medo, as dificuldades de comunicação e as restrições de acesso aos espaços de privação de liberdade pelos denunciantes tornam grande parte dos relatos carentes de maior detalhamento e complementação”, destaca o relatório.
Segundo o documento, 66% das situações denunciadas envolveram agressões físicas. As agressões verbais, que englobam ofensas diversas e ameaças, estiveram presentes em 33% dos casos registrados, sendo que em 35% dos registros foram registradas ocorrências de tratamento humilhante, como a imposição de revistas invasivas, regras disciplinares desumanizadoras, longos períodos em posições constrangedoras, agachamentos, e nudez forçada.
“Os casos denunciados são, em sua maioria, situações complexas, que articulam diversas formas de violência. Muitas das situações registradas envolvem sessões de espancamento por múltiplos agentes, condições degradantes de aprisionamento, graves omissões de socorro e atendimento médico, violências sexuais envolvendo estupros ou empalações, tratamentos humilhantes, imposição de isolamento prolongado como forma de castigo, entre outras tantas barbaridades que resultaram em sofrimento físico e psíquico agudo, e até em morte”.
O estudo destaca que apesar de a maioria dos casos tratarem da tortura praticadas contra homens, 43% das denúncias envolvem vítimas mulheres, o que é alarmante, uma vez que elas correspondem a apenas 5,8% da população carcerária total, segundo dados de 2014 do Departamento Penitenciário Nacional.
“Ainda que não seja possível afirmar categoricamente que a população feminina encarcerada é mais vulnerável à tortura, é um dado que exige maior atenção, especialmente considerando que há fatores efetivamente de risco envolvendo o encarceramento feminino, como o abandono familiar sofrido pelas presas, a persistência de presídios mistos (onde as mulheres se convertem em franca minoria), a invisibilidade social, e as violências sexuais”.
O relatório chama a atenção para o fato de o sistema prisional brasileiro ser estruturalmente machista, com suas políticas públicas desenhadas exclusivamente para a população masculina. “Nos presídios mistos, por exemplo, que representam 17% do total de unidades prisionais do país, mas cuja existência ilegal é consideravelmente ignorada, não é incomum que as reivindicações específicas da população feminina sejam desconsideradas quando conflitam com os interesses da população majoritária masculina, ou que as detentas relatem práticas discriminatórias na distribuição de vagas de trabalho, educação e atendimento médico”.