Era madrugada de 27 de maio de 2000 quando o túmulo de Irmã Dulce foi aberto pela primeira vez. O legista e o postulador do Vaticano, espécie de guia da canonização, mal puderam acreditar na preservação do corpo. Repetiram mais duas vezes a operação. Na última, há um mês, ficaram todos perplexos. Até o final de setembro, o corpo da baiana que será proclamada santa em outubro ficará exposto, definitivamente, no Santuário, no Largo de Roma, em Salvador. Mais de 27 anos depois de sua morte, todos poderão ver a resistência da santa ao tempo.
Os católicos falam num raro caso de incorrupção em Irmã Dulce, para quem é dedicada uma festa litúrgica nesta terça-feira (13). O corpo incorrupto, ou seja, aquele que não se decompôs após a morte, é venerado pela Igreja Católica como um sinal de virtude e graça. A integridade do corpo é diretamente relacionada à integridade da alma. “Se você observar, está tudo igual”, diz o frei Giovanni Messias, reitor do Santuário. O religioso evita falar sobre a última exumação, considerada sigilosa.
O padroeiro de Salvador, São Francisco Xavier, é outro santo que passou por um processo semelhante e, até hoje, está exposto numa igreja italiana (veja outros casos abaixo). Na sacristia da Catedral Basílica de Salvador, é possível ver uma gota do que se defende como sangue do religioso destacada em um busto de prata.
O corpo de Dulce será envolto numa urna de vidro e permanecerá no mesmo lugar onde está há nove anos. Antes, em junho de 2010, numa das fases da beatificação, os fiéis também puderam ver Dulce na Capela das Relíquias, na Igreja da Imaculada Conceição da Mãe de Deus.
A exumação é um dos processos envolvidos da beatificação à canonização. A realizada em julho deste ano foi a última de três no total. A primeira, ainda na Igreja da Conceição da Praia, onde a religiosa foi sepultada, foi acompanhada por oito pessoas. O procedimento era necessário antes da transferência para a Capela, em 2011. Nenhum mau cheiro se alastrou pelo corredor.
O corpo deve passar por correções artificiais no rosto antes da exposição, como ocorrem em outros casos, como o de Padre Vitor, beato exposto na cidade de Três Pontas, em Minas Gerais. De santa, no entanto, há só Irmã Dulce no Brasil.
O arcebispo de Salvador, as Obras Sociais Irmã Dulce e o postulado tiveram encontros que resultaram na ideia de deixar Dulce exposta a todos no santuário. No mês passado, segundo a Osid, oito mil pessoas visitaram o local onde está o túmulo de Dulce, guardado por uma vela que simboliza o sagrado. No chão, estão flores e cartas de pedidos.
O corpo de Irmã Dulce foi examinado, após a morte, pela legista Maria Thereza de Medeiros Pacheco, ex-diretora do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IMLNR), falecida em 2010. A reportagem tentou levantar junto ao Departamento de Polícia Técnica (DPT) detalhes sobre a autopsia, mas não houve retorno até o fechamento desta reportagem. É que a ciência pode ser capaz de justificar a preservação de um corpo, a depender dos materiais utilizados para o embalsamento, técnica para prevenir o apodrecimento.
O médico legista Raul Barreto explica que cada caso depende, por exemplo, da quantidade de formol utilizada, dos medicamentos utilizados antes da morte e das condições ambientais. A ingestão de antibióticos, por exemplo, pode retardar a ação das bactérias que decompõem o corpo num período médio de dois anos. Já a desidratação pode levar a um estado de mumificação, quando as bactérias deixam de atuar por intervenções externas ou naturais.
Os ambientes áridos e secos, a depender do posicionamento do sol em relação à sepultura, também afetam a preservação. E é justamente por isso que os religiosos acreditam num fator divino de preservação. “Aqui é muito úmido, o corpo por si só já fica sob essas condições. É surpreendente que tenha acontecido isso com ela”, reforça o frei Giovanni.
Hoje, o corpo já é considerado uma relíquia. Na história da Igreja Católica, objetos e pedaços considerados santos sempre foram venerados. São separados por graus, como enumera o frei.
As relíquias de primeira ordem, as mais importantes, incluem ossos e partículas de sangue; os de segunda ordem, objetos que tocaram um corpo santo; e a última ordem é composta por elementos que tiveram contato com esses objetos. A historiadora Luciana Onety afirma que as relíquias sagradas são vistas como portadoras de poderes mágicos, possíveis de curar e proteger. Nas raízes do cristianismo mais primitivo, a igreja já incentivava a veneração dos elementos considerados santos.
E por falar em fé, todos os meses, há cinco anos, Maria Cláudia, 41, cultua as relíquias de Irmã Dulce após a cura de um câncer. “Eu agradeço muito a ela. Nem conhecia, ouvi no hospital [Aristidez Maltez] e rezo todas as vezes, aqui, para agradecer”, diz Maria, moradora de Olindina, no nordeste do estado.
No Memorial Irmã Dulce, instalado ao lado da Osid, é possível ver o terço e a medalha que se encontravam junto ao corpo de Dulce, a fita e o lacre de seu caixão e uma parte do caixão onde esteve sepultada, na Conceição da Praia, de 1992 a 2000.
A oportunidade de ver o corpo santo separado apenas por um vidro, e tão próximo, ainda não foi divulgada oficialmente. Talvez seja a primeira vez de muitos baianos desde o sepultamento, rodeado de mística e curiosidade. No dia do velório na Conceição da Praia, em 13 de março de 1992, por exemplo, a família precisou adiar a cerimônia por 24 horas.
A recomendação tinha sido da polícia, que dava como certa a possibilidade de uma invasão à basílica, de tanta comoção ao lado de fora. Na Praça da Inglaterra, milhares de pessoas formaram filas para vê-la.