Em sua volta do México, o papa Francisco mostrou mais uma vez seu pragmatismo ao abrir a porta para o uso de contraceptivos para prevenir o vírus da zika.
"O aborto não é uma questão qualquer, é um crime", enquanto "evitar uma gravidez não é um mal absoluto", disse o papa Francisco à imprensa, em alusão aos métodos contraceptivos.
Essa abertura, embora tímida, provocou alguma questões: o Vaticano estaria deixando de lado um de seus elementos fundamentais da doutrina da igreja católica sobre a proteção da vida?
Nada é menos certo, de acordo com especialistas.
Esta não é a primeira vez que o Vaticano mostra compreensão diante de situações particularmente dramáticas, como ressaltou o papa Francisco.
O pontífice fez uma clara distinção entre o aborto e os métodos contraceptivos e citou Paulo VI (1963-1978), que autorizou de forma excepcional o uso da pílula a religiosas do Congo que temiam ser estupradas por grupos armados que existiam no país.
Estes casos excepcionais não questionam a doutrina do Vaticano, que sempre combateu o aborto e a contracepção, mas sem colocá-los nos mesmo patamar. Esta condenação foi lembrada numa encíclica do papa Paulo VI, publicada em 1968, que desde então não foi modificada pelo Vaticano.
"Uma mudança de doutrina não se faz com declarações improvisadas. A encíclica 'Humanae Vitae' (1968) de Paulo VI continua em vigor", lembra o monsenhor Octavio Ruiz Arenas, arcebispo colombiano, durante muito tempo membro da Congregação para a doutrina da fé, entrevistado pela AFP.
- 'Nenhuma ou pouca mudança' -
Foi a mesma interpretação, para seu desconsolo, que os representantes da associação americana Catholics for choice ('católicos pela escolha') tiveram. As palavras do papa "representam pouca ou nenhuma mudança", ressaltou o presidente Jon O'Brien, em comunicado.
"Mais grave, essas palavras são perigosas, pelo menos no que diz respeito ao aborto. Já sabemos que quando as mulheres estão desesperadas a ponto de interromper a gravidez, e que elas não têm acesso aos serviços legais e seguros, muitas podem recorrer a abortos clandestinos, e perigosos", apontou O'Brien.
Outras associações veem nas declarações do papa um sinal importante. "Podemos e devemos fazer mais, mas as palavras do papa são um primeiro passo na direção certa", afirmou a ONG brasileira Católicas pelo direito de decidir.
Sobre a contracepção, Francisco reconheceu, ao voltar da África no final de novembro, "uma perplexidade" da igreja sobre a questão do uso do preservativo para lutar contra a aids. Ele considerou que era "um dos métodos", mas que a África tem "feridas mais profundas".
O padre Federico Lombardi, porta-voz da Santa Sé, voltou às declarações do papa nesta sexta-feira evocando o exemplo de seu predecessor Bento XVI. Em entrevista, o papa alemão já havia proposto o uso do preservativo em situações risco de contaminação por aids.
"O contraceptivo ou preservativo, nos casos de urgência e gravidade particular, podem ser objeto de um sério discernimento de consciência. Foi isso que disse o papa" Francisco, explicou Lombardi, entrevistado pela Rádio Vaticano.
As afirmações do pontífice representam então uma certa "abertura, mas de maneira diluída. Uma forma muito jesuíta, que é a de considerar a realidade mais importante do que as ideias", explicou à AFP o vaticanista da agência italiana Askanews, Iacopo Scaramuzzi.
Para ele, o papa Francisco também tomou o cuidado de citar Paulo VI, autor da encíclica condenando a contracepção, para dar segurança aos meios mais conservadores.
Mas o argentino Jorge Bergoglio conhece muito bem a América Latina, maior vítima do vírus da zika, e "tenho a impressão de que o que ele diz segue na realidade uma sabedoria já demonstrada por muitos sacerdotes no continente", quando eles fecham os olhos para a contracepção, explica Scaramuzzi.