Os muitos lados de Getúlio Vargas

Nessa entrevista exclusiva ao Jornal do Commercio, Lira Neto, autor da biografia em três volumes do ex-presidente Getúlio Vargas, explica as contradições e os pontos obscuros em volta do líder brasileiro
MARCOS OLIVEIRA
Publicado em 25/08/2014 às 5:00
Nessa entrevista exclusiva ao Jornal do Commercio, Lira Neto, autor da biografia em três volumes do ex-presidente Getúlio Vargas, explica as contradições e os pontos obscuros em volta do líder brasileiro Foto: Renato Parada / Divulgação


 

O jornalista, historiador e escritor Lira Neto, nascido em Fortaleza em 1963, durante cinco anos se debruçou sobre a missão de escrever a biografia de Getúlio Vargas. Ele, já é consagrado como biógrafo, tendo conquistado três prêmios Jabuti nessa área - dentre eles, um com o primeiro volume de Getúlio (1883 - 1930), está lançando esse mês o último livro da trilogia sobre o líder popular brasileiro. 

 

Jornal do Commercio - Durante sua trajetória política, em vários momentos Getúlio ameaça cometer suicídio. Mas só o fez em 1954. O que diferencia esse momento dos outros?

 Lira Neto - Realmente ao longo da sua vida e da sua trajetória política Getúlio pensa nessa possibilidade. Seja escrevendo no seu diário, seja na forma de carta, e manifesta esse desejo para não passar para a história como um derrotado, como alguém humilhado . Ele não queria sair da vida pela porta dos fundos da história. O que vai diferenciar esse ano de 1954 dos outros é que em todas as ocasiões em que ele escreveu sobre o suicídio ou deixou alguma carta, ele acabou dando a volta por cima e superando as dificuldades políticas que o acometiam. Em 1954 ele estava em uma situação delicada, prestes a sair preso do Catete e ir direto para o Galeão, onde estava sendo investigada a morte do major Rubens Vaz, da Aeronáutica. Chegou a um limite: ou sairia morto, como ocorreu, ou preso. Vargas jamais se permitiria essa humilhação.

 

JC - O fato de em vários momentos ele falar sobre suicídio é o suficiente para dirimir qualquer pensamento sobre uma teoria da conspiração no suicídio?

Lira Neto - Essa teoria conspiratória é recorrente, mas ela é desprovida de qualquer fundamento. Todas essas cartas mostram que ele já havia premeditado a própria morte caso as coisas não fossem positivas para ele. Outra coisa é que havia pessoas no palácio e todas elas acompanharam os acontecimentos. Eu vi uma versão recente, absurda. De que homens mascarados teriam entrado no quarto enquanto ele transava com uma amante (risos). Imagine se diante de um período tão atribulado ele iria pensar nisso. Invenções. O que levou Vargas a se matar foram as conjunturas.

 JC - Sem o suicídio ele teria se transformado no mito em que se tornou?

Lira Neto - Eu sempre evito tentar fazer versões alternativas da história. Mas nesse caso específico não há duvida de que o ato do suicídio, do homem que morre como mártir, perseguido pelos adversários, pela oposição, pela imprensa, solidificou ainda mais sua imagem. Esse gesto foi tão forte que ajudou nessa cristalização do mito. A figura de Getúlio assumiu uma proporção assustadora. Toda essa mistificação foi construída desde o primeiro momento. Quando ele assume em 1930, durante o Estado Novo, quando ele usa toda máquina governamental em propaganda. Claro que a votação obtida em 1950 também mostra isso. Mas, quando ele se mata e sai da vida para entrar na história ele acaba por amplificar e solidificar essa imagem. 

JC - Qual o papel que a imprensa exerceu para o suicídio de Vargas?

Lira Neto - Desde o momento em que sugeriu que iria tentar voltar à presidência em 1950 ele passou a ser alvo de uma campanha sistemática de praticamente toda a imprensa da época. Foi feito um linchamento moral, em que a oposição instrumentalizou os jornais e os jornais instrumentalizaram a oposição, e seguiu-se um combate feroz. O curioso é que enquanto o Estado Novo ele governou a maior parte do tempo cerceando a imprensa. Em 1950, mesmo com tanto furor dos jornais, ele em nenhum momento faz uso de instrumentos cerceadores. Quando ele volta, pelas regras do jogo democrático, ele permanece cumprindo todas as nuances desse jogo da democracia, mesmo com alguns aliados sugerindo que ele deveria fechar o congresso.

JC – Pernambuco aparece em destaque nas páginas dos três livros. Em alguns momentos fornecendo nomes para compor os quadros da administração, principalmente no último governo. Em outros por representar um campo contrário ao discurso do Estado Novo. Como foi a relação de Getúlio com o nosso Estado?

Lira Neto - Ali em 1950, na hora de compor o ministério, no que ele chamou de ministério da experiência, repetindo o que fez durante todo governo, ele conta com quadros de Pernambuco, assim como já havia contado com outros nomes, como Agamenon Magalhães. Por mais que ele pregasse o fim das oligarquias e uma nova forma de fazer política, ele se serviu de uma série de oligarquias, inclusive das pernambucanas. Ele próprio era filho de uma oligarquia gaúcha. A relação dele com Pernambuco era de amor e ódio.

JC - Para muitos, Getúlio representou um avanço para o seu tempo, modernizando o país, principalmente na questão dos direitos trabalhistas e da indústria. Para outros, o que havia de mais tradicional: a manipulação das massas. Afinal, o que ele representou para o Brasil?

Lira Neto -É preciso compreender Getúlio em todas as suas dimensões. Naquilo que ele teve de bom e de mal. O professor Boris Fausto, um dos maiores historiadores brasileiros, diz isso de uma forma precisa: Getúlio para o bem e para o mal foi o personagem mais importante da história brasileira. De um lado ele modernizou o país e de outro governou com mão de ferro, torturou, perseguiu. É preciso analisa-lo não só com devoção, mas também não apenas com negação

 JC - Quais os herdeiros do trabalhismo no Brasil?

 Lira Neto- O grande herdeiro foi João Goulart. Ele foi ministro do Trabalho, um homem de absoluta confiança e que desfrutava de uma amizade quase paternal. Depois da morte do Jango, temos o Leonel Brizola, guardada as devidas proporções, tentou manter viva a chama do Getulismo e do trabalhismo. Mas hoje, por mais que a gente tente identificar semelhanças, não há ninguém que possa se assemelhar ao Getúlio. Por mais que as discussões que ele suscitou na época continuem ainda hoje em dia

JC - O senhor falou em getulismo. Existe alguma similaridade entre getulismo e o lulismo vivenciado desde a eleição do ex-presidente Lula, em 2002?

Lira Neto- Não há dúvidas de que se olharmos a histórica política brasileira do século 20 pra cá, poderemos observar duas lideranças populares de destaque : Vargas e Lula. É possível traçar um paralelo entre essas duas figuras. Mas é preciso destacar que Lula na origem era extremamente anti-getulista, pois na época de Vargas não existia sindicato livre. Eram todos vinculados ao Ministério do Trabalho e fortemente controlados. Depois ele reviu essa posição

JC - Getúlio foi o primeiro líder brasileiro a buscar a legitimação do povo?

Lira Neto- Sim, sem dúvida. Antes de Getúlio o poder era exercido a revelia do povo. Ele inaugura essa nova fase ao buscar essa legitimação com a população. Na República Velha e na Primeira República não havia nenhum interesse de buscar essa legitimação. Até por que, no seu discurso original, ele dispensava a mediação da política

JC - Antes de 1930 Vargas já defendia uma “nova política”. Qual a similaridade dessa forma de governo pensado por Vargas, com a “nova política” tão propalada nos dias atuais?

Lira Neto- Na verdade quando assume em 1930, ele chega declarando a morte da política, que ela é o poço da iniquidade, que as pessoas não aguentam mais a política. E a partir daquele momento ele irá governar fora do auxílio da política. E, portanto, com um governo tecnocrata, com especialistas nos postos, restringindo o uso de nomes ligados à política. O que é um discurso perigoso, pois na hora em que você recusa o jogo político, você só abre caminho para o autoritarismo. Se você não vota, outra pessoa vota e alguém vai governar. Quando ele prega a morte da política ele prega o governo de um homem só. É impensável e contraditória que a política possa ser banida da administração.

JC - Os pesquisadores divergem quanto o que motivou o posicionamento de Getúlio no momento de entrar na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Uns afirmam que a posição de se aliar aos EUA já havia sido tomada muito antes de 1942. A decisão já tinha sido tomada e só anunciada depois para tentar receber mais concessões da Alemanha?

Lira Neto- o acredito nisso. Se você pegar uma entrevista antiga dele, ainda como candidato a presidência em 1929, quando um repórter indaga a ele sobre qual o ideal modelo de governo para o Brasil, ele responde com todas as letras: “o governo Fascista de Mussolini , na Itália”. Ele tinha uma identificação muito forte com os governos totalitários. Quando ele chega ao poder chega em um momento em que a democracia estava em crise. Os Estados Unidos, a grande nação democrática, estava em crise. Foi um momento de ascensão de figuras totalitárias, como Hitler e Mussolini. Durante boa parte no período pré-guerra, era a Alemanha o nosso principal parceiro comercial . Quando se dá o bloqueio marítimo pelos ingleses e a guerra começa a virar, com os aliados obtendo grandes vitórias, o Getúlio analisa que está na hora de reavaliar a situação. Com seu pragmatismo ele tenta obter os benefícios dessa nova situação e o Brasil, por ter uma posição geográfica muito cobiçada, passa a barganhar com os aliados para receber condições para implantar a Usina Siderúrgica de Volta Redonda, impulsionado a industrialização do país

JC - Após 1800 páginas e mais de cinco anos de pesquisas para escrever a trilogia, ainda restam dúvidas sobre determinados aspectos da vida de Vargas?

Lira Neto- Esse nosso trabalho está muito bem documentado, tanto por pesquisas minhas como pelas de outros autores. Mas como eu não acredito em biografias definitivas, acredito que outros autores tem um amplo território para se debruçar. Agora, a história é sempre traiçoeira e deixa sempre algumas lacunas. No caso específico da história de Getúlio, algo que ainda não foi bem contado e talvez nunca será é o que de fato aconteceu naquela noite de 5 de agosto de 1954 (atentado contra Carlos Lacerda, mas que acabou assassinado o major Rubens Vaz) . As versões dos envolvidos são completamente antagônicas. O próprio Lacerda chegou a descrever o que aconteceu ali de forma diferente. A arma dele não foi periciada. O tiro que matou o major pode ter partido da própria arma do Lacerda, pois ele mesmo afirmou que poderia ter acidentalmente acertado o major. Mas tudo aí é obscuro, tudo aí é bruma. Essa é uma história que eu acho que irá permanecer em aberto.


 

 

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