Muito mais do que um passeio gótico, percorrer um cemitério é como estar em um museu repleto de arte tumular. Nesse segmento, as obras são as próprias sepulturas, geralmente pertencentes a famílias abastadas ou grandes personalidades, que não descansam em paz em uma simples lápide gravada com as datas de nascimento e morte.
Os defuntos ilustres repousam em construções suntuosas, feitas de materiais nobres, como mármore, e adornadas com esculturas, lustres de cristal, tapetes persas e entalhes trabalhados.
“Os grandes mausoléus buscavam reproduzir a casa do morto, criando um espaço para sociabilidade da família. E as esculturas procuravam reproduzir os mortos e até suas residências para presentificá-los. Isso acontecia até o século 19, quando a morte ainda era algo ritualizado. Os velórios ocorriam em casa e as pessoas tinham o hábito de visitar os túmulos em datas comemorativas, não somente no Dia de Finados”, declara o doutor em antropologia, professor da Universidade Federal de Pernambuco e especialista em museologia Antonio Motta.
Ele trata da relação da cultura ocidental com o sepultamento e com os monumentos cemiteriais no livro À flor da pedra – formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros (1999, editora Massangana), obra que está com edição esgotada, mas que deve ser reeditada em breve. “A melhor forma de conhecer uma sociedade é através dos cemitérios. É lá que podemos visualizar as diferenças de classe, com as covas rasas dos indigentes convivendo com os túmulos dos nobres, e o gosto estético de uma época”, define Motta.
É na capital francesa, aliás, que fica um dos cemitérios mais famosos e mais visitados do mundo: o Pére Lachaise. Lá estão enterradas figuras como o escritor Oscar Wilde, o pintor Max Ernst e o cantor Jim Morrison. O da Recoleta, em Buenos Aires, também recebe muitas visitas, principalmente ao mausoléu da ex-primeira-dama Eva Péron.
No Brasil, o Cemitério da Consolação, em São Paulo, por exemplo, atrai turistas de todo o País e do mundo. Um dos mais suntuosos túmulos pertence à família Matarazzo, que leva a assinatura do escultor italiano Luigi Brizzolara. Em Porto Alegre, o Santa Casa, também aberto à visitação turística, se destaca por abrigar as catacumbas das famílias ricas nos locais mais altos e as dos pobres no solo.
No Recife, a maior e mais rica necrópole é o Cemitério de Bom Jesus da Redenção, mais conhecido por Santo Amaro, com 14 hectares e meio de área. Inaugurado em 1851, guarda mausoléus de figuras ilustres como os abolicionistas Joaquim Nabuco e José Mariano, dos ex-governadores Agamenon Magalhães e Manoel Borba, do Barão de Mecejana e do ícone do manguebeat, o cantor Chico Science.
Já no pequeno Cemitério dos Ingleses repousam os restos mortais do general Abreu e Lima. “Há também alguns mausoléus de propriedade dos latifundiários na zona do cultivo açucareiro”, acrescenta Motta em passagem do livro.
Infelizmente, a capital pernambucana ainda não conta com roteiro de turismo cemiterial. Mas isso deve mudar em breve. “O turismo cemiterial é uma tendência em todo o mundo e por isso estamos estudando a possibilidade de incluir Santo Amaro em algum roteiro de visitação. Mas é complicado porque geralmente os cemitérios abertos a visitas não mais recebem funerais, a não ser dos familiares que possuem mausoléus no local. Em Santo Amaro, precisaríamos aliar as duas atividades”, diz o chefe de divisão de turismo de base do Recife, Bráulio Moura.
No momento, segundo Bráulio, existe um roteiro, não especificamente de turismo cemiterial, que inclui edificações de estilo britânico no Recife e o Cemitério dos Ingleses. Erguido em 1814, o cemitério foi cedido aos súditos da rainha, que eram anglicanos, portanto, não podiam ser enterrados na parte interna ou no terreno das igrejas. E foi justamente por receber uma negativa da Igreja Católica que o general Abreu e Lima está enterrado lá.
ESTILO TUMULAR
Um dos mais belos túmulos do Cemitério de Santo Amaro, é o do Barão e da Baronesa de Mecejana. “Ele é todo feito em mármore carrara com grande influência dos romanos, por causa do sentimento católico. O formato de tocha invertida é símbolo da morte e da expectativa de que essa luz se reacenda”, explica o escultor e responsável pela última restauração do túmulo, Jobson Figueiredo, realizada em 1999. Em visita ao mausoléu, vale á pena reparar também o detalhe das esculturas do barão e da baronesa, que reproduzem até a textura de uma veste rendada.
Em 1993, Figueiredo também foi responsável pela recuperação dos portões e gradis e do Cristo de ferro fundido, localizado no interior da capela de formato octogonal de estilo gótico que fica no centro do Cemitério de Santo Amaro. De qualquer uma das alamedas que se olhe, é possível visualizar o Cristo.
Em formato de cruz, o cemitério concebido pelo francês Louis Léger Vauthier, segundo Jobson, possui uma disposição democrática das sepulturas. “É mais humanizadas. Enquanto na Europa os milionários são enterrados logo na entrada dos espaços e os ricos nos fundos, no de Santo Amaro, cada ala é um triângulo contendo à frente os túmulos ricos e atrás, as covas rasas”, explica Jobson.
Outro mausoléu ilustre do lugar é o do ex-governador Agamenon Magalhães. Trata-se de um grande quadrado feito de granito apicoado e flamejado, decorado com esculturas em bronze. “É um túmulo que, por ser antigo, virou um clássico. Mas nas suas formas reta, nota-se uma busca pelo estilo moderno. Foi criado como se fosse um elemento monolítico, sem arabescos nem rebusques”, explica o escultor.
Também o ex-governador Manoel Borba ganhou uma sepultura não menos pomposa, ostentando a escultura de um leão. “É o leão do norte, símbolo de Pernambuco, que representa a força, o ato físico de bravura. Já as fitas no entorno da estrutura tumular são símbolos de pesar”, interpreta Jobson. Já o túmulo de Joaquim Nabuco, todo esculpido em mármore carrara, simboliza a libertação dos escravos, que carregam o sarcófago do abolicionista.
Atualmente, os mortos não recebem mais homenagens tão pomposas, nem são lembrados com tanta frequência. Com exceção do Dia de Finados, ficam esquecidos em suas moradas cada vez mais simplórias e verticais. “É que hoje em dia as pessoas negam a morte e falar dela se tornou o grande tabu da humanidade”, constata Antonio Motta.