Miguel Otávio, um garoto de 5 anos que caiu do 9º andar de um prédio de luxo do Centro do Recife, terça-feira passada (02), tem outros nomes e rostos. Capital com cerca de 1,6 milhão de habitantes, Recife possui 125 mil crianças com idades entre zero e cinco anos, período da vida chamado de primeira infância. Desse universo, 42% (ou 52 mil pequenos recifenses nessa faixa etária) figuram na lista do Cadastro Único do governo federal, o CadÚnico. Significa que pertencem a famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza.
Miguel era criado pela mãe e pela avó, ambas negras, empregadas domésticas da elite pernambucana. No País, havia 15,8 milhões de famílias chefiadas por mulheres negras, segundo pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, realizada em 2015 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com dados do IBGE. No Recife, na rede municipal de ensino, 83% dos alunos matriculados na educação infantil tinham uma mulher como chefe do lar em 2018. E desse universo, dois terços eram as únicas provedoras das residências.
Miguel estava matriculado na educação infantil, numa pequena escola particular do bairro onde morava, Barro, na periferia recifense. A cidade deveria ter 100% das crianças com 4 e 5 anos estudando na pré-escola, como determina o Plano Nacional de Educação. Soma hoje 90%. No Brasil são 93,8%. Para a população mais nova, de zero a 3 anos, o atendimento em creches atualmente no Recife é de apenas 35%, mesmo índice observado nacionalmente. E ainda distante da meta de chegar a 70% em 2025, como recomenda o Plano Municipal de Educação.
Miguel se foi. Mas há milhares de outras crianças como ele que precisam de mais atenção do poder público e da sociedade. “É a criança que está na primeira infância a maior vítima das nossas mazelas sociais, justamente por estar numa fase sem nenhuma autonomia. Cuidar delas é tarefa de todos”, diz o secretário Executivo da Primeira Infância do Recife, Rogério Morais.
“As crianças estão no limbo, tolhidas de seus direitos, negligenciadas. Há um arcabouço legal assegurado a elas na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos Planos de Educação. Mas que infelizmente figuram hoje como letras mortas. A mãe de Miguel precisou sair para trabalhar em plena pandemia, como tantas outras mulheres. Perdeu seu filho. Não podemos encarar como uma fatalidade. Não podemos permitir que aconteça o mesmo com outros Miguéis”, diz Cida Freire, do conselho gestor da Rede da Primeira Infância de Pernambuco e do Fórum em Defesa da Educação Infantil de Pernambuco.