Um dos mais conceituados filósofos do país bebeu - como poucos - da fonte de conhecimento do educador Paulo Freire - que faria 100 anos neste domingo, 19 de setembro, se estivesse vivo. O escritor, educador, palestrante e professor universitário paranaense Mário Sérgio Cortella, em entrevista ao JC, fala o nome do pernambucano sempre acompanhado de verbos no presente - um ato falho que na verdade pode demonstrar o quanto o mestre dele continua presente em sua vivência.
Cortella teve contato com os ensinamentos de Freire ainda no início da universidade, em 1973, quando leu uma de suas obras pela primeira vez. Mais de duas décadas depois, em 1989, dividiu com o educador a gestão da Secretaria de Educação da cidade de São Paulo, quando a prefeitura foi comandada pela deputada federal Luiza Erundina (PSOL), então PT. Foi, também, o último orientando do educador, durante doutorado pela PUC-SP.
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Leia detalhes desta relação, conheça Freire segundo Cortella e saiba o que, na opinião do especialista, o Brasil precisa avançar para alcançar o ideal de educação em que acredita.
JC: Como foi trabalhar com Paulo na Secretaria de Educação de São Paulo? Principalmente para você, que continuou esse legado? Como foi esse período à frente da administração da cidade?
Mário Sergio Cortella: Paulo Freire foi o primeiro secretário escolhido pela prefeita Luiza Erundina, e é muito forte imaginar que quando ele assumiu como secretário, disse ao grupo do qual eu também fazia parte que ele não ficaria o mandato todo porque ele queria continuar viajando, produzindo obras também em outros lugares - porque ele entendeu, sem nenhum tipo de modéstia forjada, a capacidade dele de influenciar pessoas de modo positivo. Ele exerceu do dia 1º de janeiro de 1989 até o dia 27 de maio de 1991, e quando a convivência com ele se deu, foi muito forte. Conviver com alguém com mais experiência, com capacidade de ter vivenciado não só o nordeste brasileiro, mas também uma parte da nossa nação antes de 1964, e depois uma parte do mundo, com alguém que ensinou em Harvard, e que, aliás, ensinou sobre si mesmo. Foi algo que elaborou imensamente a minha formação. Eu às vezes brinco que Paulo Freire foi meu docente no melhor curso de educação de adultos que eu poderia ter, porque eu era capaz de tirar lições e inspirações no cotidiano. Ele era uma chefia que, embora democrática na capacidade de escuta, de maneira alguma admitia a negligência e a desatenção. Portanto, ele tinha uma firmeza carinhosa, mas que não deixava de ser firmeza. Isso para mim, sem dúvida, foi especial.
JC: Acredito que essa relação tenha ido para além da educação. Então, pergunto: como era a amizade com Paulo Freire? Quem ele era intimamente?
Mário Sergio Cortella: Paulo Freire era um homem absolutamente democrata no sentido político do termo, alguém que acolhia a discordância sem entender que ela deveria degenerar em confronto e anulação. Paulo Freire era uma pessoa de uma alegria muito grande, que nunca deixou de fincar as raízes de Pernambuco. Inclusive, ele falava outros idiomas - como inglês e francês - de modo humorado, com o modo recifense de prosódio, uma coisa muito gostosa. Ele era também uma pessoa de uma humildade pedagógica imensa, capaz de fato de prestar atenção nas pessoas, e um filósofo da educação na contemporaneidade que extrapola os limites do Brasil. Ele jamais seria avesso com alguém que não concordasse com ele. Aliás, se ele agora conosco estivesse e se dissessem que havia objeção a alguma das coisas que fez ou praticou, ele tentaria entender os argumentos, imaginaria que isso é exatamente o que constitui uma convivência que constrói o bom senso e uma harmonia mais duradoura.
JC: O que você acha que fez com que a opinião pública, principalmente de pessoas mais à direita, se virasse contra Paulo Freire? Você considera as críticas pertinentes e verdadeiras de alguma forma?
Mário Sergio Cortella: Há três tipos de críticas ou de objetores do pensamento e da prática de Paulo Freire. Há pessoas que fazem sem conhecê-lo; portanto por inocência. Para outras pessoas, porque não conhecem a obra e o trabalho, e por isso têm uma confusão de compreensão. A essas, até se imagina que se pudessem esclarecer-se nesse ponto seriam capazes, eventualmente, até de alterar a concepção sobre ele. Há um segundo grupo de pessoas que são as que têm fundamentos e argumentação, que também são estudiosa, não só daquilo que Paulo fez e elaborou, mas de outros autores nos quais ele se baseou. Portanto, é uma discordância argumentativa que acaba entrando no campo da decência, porque não é dissimulada, ela tem fundamentação. E há um terceiro grupo que conhece uma parte da obra dele e deliberadamente a distorce, colocando como se ela tivesse uma outra direção, e isso, sem dúvida, que é uma crítica de má fé, é a menos respeitável dessas três linhas. Porque fazer, de modo camuflado ou distorcido, é algo que Paulo Freire diria, usando uma expressão muito trazida por ele, que "tá faltando boniteza".
JC: À época em que vocês conviveram mais, na década de 80, quando ele já havia voltado do exílio, se tinha de forma geral a real dimensão do que Paulo Freire representava no Brasil? Ele de fato conseguiu fazer uma virada de pensamento na educação ou isso veio com o passar dos anos? Ou, ainda, a educação brasileira nunca atingiu aquilo que ele pensava?
Mário Sergio Cortella: O pensamento de Paulo Freire persiste, ainda que a prática dele tenha cessado. Quando ele faleceu, o Brasil não tinha completado ainda uma década da Nova Constituição em vigor, e a democracia - no sentido mais ampliado - não havia ainda sido restaurada de maneira mais densa. Não podemos esquecer que Paulo Freire quando voltou do exílio no final de 1979, ele estava lidando com o Brasil que está se reconhecendo, se redebatendo, ainda no meio de uma ditadura cívico-militar. Nesse sentido, o pensamento freiriano acabou tendo uma marca original mais ligada às forças de oposição do que necessariamente ao conjunto da educação. A obra dele, sem dúvida, passa a ter uma influência forte nos anos de 1980; mas no caso de encarnar em práticas, por exemplo, de prefeituras variadas, com orientações ideológicas, se deu mesmo nos anos de 1990. Paulo Freire nem sempre tem toda influência que se poderia desejar em relação a pontos positivos da educação brasileira, porque ele só foi gestor em São Paulo. Vez ou outra se diz que o pensamento de Paulo Freire tirou do trilho a educação pública brasileira, e isso é estranho porque ele não tinha ascendência, não tinha autoridade, mas tem sim um impacto muito presente em muitas nações, haja vista o reconhecimento que ele teve mundo afora.
JC: Qual foi, na sua opinião, o maior legado de Paulo Freire na educação do Brasil?
Mário Sergio Cortella: A grande herança dele para a educação brasileira é a noção dialógica de que a educação se constrói dentro do diálogo - o que não retira a autoridade docente, mas descarta o autoritarismo docente. Em segundo lugar, uma atenção forte à formação de cidadania com conteúdos necessários para formação técnico-científica de alguém, e, é claro, o que ele entendia como absolutamente urgente que é levar em conta a realidade circunstante do aluno, o universo vivencial de cada pessoa, criança, jovem ou adulto, de maneira que jamais se possa fazer da educação uma mera absorção. Esses são legados que estão no Brasil e fora do Brasil, e por isso há uma permanência do pensamento freiriano nesse campo. Ele não está em todos os cantos, em todos os modos, mas onde há presença, perceptiva, crítica, analítica do pensamento de Freire, há sim uma possibilidade de um bom uso.
JC: Paulo defendia que era impossível fazer educação de qualidade sem política. O que isso de fato significa e como se transcreve na realidade?
Mário Sergio Cortella: Muitos dizem que Paulo Freire distorceu o trabalho pedagógico ao afirmar que a educação é um ato político, e que toda atividade pedagógica é também uma atividade política. Alguns compreenderam o conceito de política que ele utilizava de modo equivocado. Em momento algum ele entendeu política como sinônimo de partido. Aliás, porque seria estranho ao pensamento dele, que falava em liberdade, autonomia, emancipação, e o partido é uma escolha, é uma maneira que algumas pessoas têm de fazer política. A noção de comunidade no grego antigo é chamada de “polis”, da onde vem a palavra política, que significa a convivência numa comunidade de pessoas. Aos latinos, a expressão polis deu origem às palavras cidade e cidadania. Há pessoas que recusam a noção de política e preferem a de cidadania; e aí é que há um equívoco, porque as duas palavras significam a mesma coisa, uma em grego, outra em latim. Paulo Freire vinculou a educação escolar à atividade da vida da comunidade. Ele entendia que era impossível fazer uma educação de qualidade sem levar em conta os interesses de uma comunidade. Nessa hora, a educação aparece como uma expressão da política da comunidade que a vivencia, e pode sim ter seus reflexos no campo da política institucional formal partidária e ideológica, que é uma das maneiras que a política se apresenta, mas ele jamais fez identificação tão pequena ou tão rasteira entre política e ideologia.
JC: Você percebe retrocesso no modo em que a educação tem sido tratada e incentivada no nosso país? Como você avalia esse momento que vivemos?
Mário Sergio Cortella: Paulo Freire nesse momento diria algo especial: não há uma política educacional deliberada, intencional e clarificada no campo da nacionalidade. Por isso, precisaríamos, diria ele, imagino, de cinco “P” nesse momento, que não temos. Primeiro, um projeto de educação, que não temos nesse momento em termos de formação docente, de implantação da base comum curricular, da ideia da educação de jovens e adultos, dos mecanismos de consolidação daquilo que é a alfabetização de crianças e jovens. O segundo P que não há é um programa, em termos de implantação. Terceiro, não se conversa sobre provimento; isto é, como sustentar aquilo que a educação precisa no que cabe ao Governo Federal e aos entes da federação que são subsidiários nisso, como estados e municípios. O quarto P são as pessoas, quem é que se envolve e de que modo. Por último, o quinto P: quais são os prazos para se fazer isso tudo. Paulo Freire foi um planejador, e sem dúvida acharia que era necessário começar pelo primeiro dos P: qual é o projeto? E aí os outros teriam que vir dentro disso.
JC: O que se leva desses 100 anos da existência de Paulo Freire e da pedagogia do “esperançar”?
Mário Sergio Cortella: Eu acho que é mais do que importante e mais do que animado que nós tenhamos um educador brasileiro do porte de Paulo Freire como um dos grandes filósofos da educação contemporânea. Ele é conhecido por ter proposto um método específico de alfabetização de adultos que é muito mais amplo do que isso, porque ele pensou numa filosofia do método, numa metodologia. E, sem dúvidas, ele contribuiu a partir da sua área original de formação, já que ele era na origem advogado formado em direito por aquilo que hoje é a Universidade Federal de Pernambuco, o que significa que se envolveu desde cedo em reflexões sobre justiça. Ele colocou tudo aquilo que foi a organização do trabalho pedagógico escolar como sendo a necessidade de elevação da dignidade coletiva, da presença do que ele sempre chamava de esperança ativa e sem dúvida da necessidade de nós entendermos que uma escola pública de qualidade ela não é só possível, é mais do que possível, ela é necessária. Isso foi um esforço que ele fez. E esse esforço ele apresenta hoje resultados, algumas pessoas discordam, e têm o direito de fazê-lo, outras em larga escala no Brasil e fora daqui concordam e também têm o direito de fazê-lo, mas não tem como deixá-lo de lado quando se pensa em educação na contemporaneidade em várias regiões do nosso planeta. Por isso, aos cem anos da existência de Paulo Freire, só se pode dizer: viva Paulo Freire!