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Por Mirella Araújo e equipe
ESPECIAL

100 anos de Paulo Freire: O pai que saía de casa para ganhar o mundo e o marido companheiro. Leia quem foi o educador para a família

Familiares próximos ao educador pernambucano contam, sob sua perspectiva, como era a personalidade e qual legado Freire deixou

Cadastrado por

Katarina Moraes, Natália Ribeiro

Publicado em 19/09/2021 às 9:00 | Atualizado em 22/09/2021 às 13:07
UNIÃO Freire e Ana Maria Araújo Freire foram casados por 11 anos. Ficaram juntos até a morte do educador - DIVULGAÇÃO

100 anos de Paulo Freire - THIAGO LUCAS/ ARTES JC

Muito se sabe sobre Paulo Freire (1921-1997) na figura do patrono da educação brasileira. Afinal, seus ensinamentos estão marcados para sempre nos títulos dos quais ele é autor, enquanto entrevistas sobre suas obras seguem disponíveis na internet, e grandes universidades mantém sua filosofia viva. Mas como era o Paulo na intimidade, o recifense, amigo, esposo, pai?

Para os filhos, Paulo foi alguém que sempre aproveitou o tempo que tinha com a família com absoluta entrega, ainda que fosse fisicamente ausente por ter se tornado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia no mundo - o que tornava sua agenda lotada de viagens, palestras e compromissos fora de casa. Para Nita, sua segunda esposa, foi um homem que a respeitava integralmente como mulher, um companheiro de todas as horas e uma presença que permanece até hoje.

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Em três diferentes entrevistas feitas pelo JC, com dois filhos e a ex-esposa de Paulo Freire, todos repetem o quão coerente o educador era. Mais do que palavras, seus ensinamentos pareciam mover a própria vida e a de quem estava ao seu redor, construido relações pautadas pelo amor e entendimento ao próximo - seja quem fosse.

Neste 19 de setembro, dia em que Freire completaria 100 anos, se estivesse vivo, leia, pela voz dos próprios familiares, curiosas histórias, relatos e a visão de quem conviveu mais proximamente com um dos mais admirados estudiosos brasileiros.

Lutgardes Costa Freire, 62 anos. Sociólogo e filho mais novo de Paulo Freire

"Ser filho de Paulo Freire é uma grande honra; é muito gostoso. Ele era uma pessoa que tinha uma visão do futuro impressionante. Meus pais eram muito amorosos, sempre me protegeram e procuraram o melhor para mim. Com meu pai, aprendi a ter pena das pessoas; não de forma excessiva, mas que me ensinou a ter uma atitude compreensiva com os mais carentes, a ponto de ajudá-los. E o amor, principalmente. Às pessoas, aos animais, à natureza, ao trabalho. 

Não era possível fazer um desligamento entre o Paulo educador, e o Paulo pai. Ele era pai e educador ao mesmo tempo. Mas ele era um pai de difícil presença devido ao trabalho, já que foi ganhando muita notoriedade em todo Brasil e depois no mundo, então viajava muito e ficava pouco tempo em casa. Assim, cresci mais educado pela minha mãe, que cuidava da gente, de mim e do meu irmão. Mas quando ele voltava das viagens era uma festa; ele falava do trabalho e era muito agradável.

O exílio foi diferente para cada um de nós, mas difícil para todos. Eu não sentia tanta falta do Brasil quanto meus pais e meus irmãos - que saíram adolescentes -, mas sentia do meu tio, das minhas tias, dos meus primos. Meu pai fazia questão de manter a tradição brasileira em casa, com feijão, arroz e pé de porco, porque gostavam de uma boa comida nordestina.

Sobre as manifestações contra meu pai, não tomo conhecimento e não me deixo levar pela ira. Penso que são pessoas que não entendem tão bem a história do meu pai e o que ele escreveu. Acho que estamos vivendo um momento muito crítico no nosso país. Se você é jovem, aproveite para estudar. Tente estudar. Se informe. Compre jornal, assista televisão, acesse a internet, se puder. Queria dar uma mensagem de esperança para os jovens, pois acho que hoje em dia, no Brasil, eles estão muito perdidos, muito desanimados, esmagados pela política nacional. Essa é a minha mensagem. Para ele, esperança era um verbo. Esperançar."

Fátima Freire, 72 anos. Pedagoga e filha de Paulo Freire

"O que mais me chamava atenção quando criança e adulta, depois, era o nível de coerência que ele tinha com o que ele falava para fora, na filosofia da educação, e do que ele vivia conosco, em casa. É um privilégio ter tido essas referências, que me estruturaram. O que eu mais aprendi é que nós éramos privilegiados. Portanto, eu tinha que agradecer e dividir. Percebi desde pequena que existia uma outra classe social, injustiçada e desprivilegiada. Quando ia para a escola, a minha mãe preparava um lanche reforçado todas as manhãs, que era para a minha amiga de mesa que não levava comida. É um ensinamento muito grande, que me faz hoje uma adulta com capacidade de se colocar no lugar do outro.

Ele tinha um apreço enorme pela música e adorava cantar. A imagem de ser acalentada para dormir com as canções que meu pai cantava é forte e belíssima. Ele também era apaixonado pela comida nordestina. Lembro de procurarmos no exílio, no Chile, por uma galinha viva para poder fazer galinha de cabidela. Ele trabalhava, viajava e estudava muito, então tinha a presença física paterna em menos tempo, mas numa qualidade incrível. Imagino como deveria ser difícil para ele organizar o tempo. Desde criança, eu o via fechado em uma biblioteca estudando. Ao mesmo tempo, quando saía dela, a capacidade dele de estar presente conosco era uma coisa fantástica, pois anulava toda a possibilidade da ausência anterior.

Quando eu tinha de 8 a 10 anos, quando morávamos em Casa Forte, um ladrão entrou na nossa casa e se escondeu no banheiro. Óbvio, fez muito barulho e todo mundo acordou. E eu, pequena, vi meu pai conversando com ele, perguntando se estava com fome. É uma memória fortíssima da capacidade que ele tinha de acreditar nas pessoas e que elas têm coisas boas para dar. Depois, já adolescente, vivíamos na Tamarineira, próximo a uma casa de pessoas com problemas psíquicos. Numa tarde, desembocou um desses pacientes lá em casa. Foi o maior alvoroço! Vieram enfermeiros e tudo mais. Mas, mais uma vez, vi meu pai conversando e acalmando a pessoa, que estava assustada e encurralada.

De certa forma, toda família continuou socializando e desenvolvendo a filosofia do paizinho. Só que na área de educação, como formação, foi Madalena, a mais velha, e eu. Uma coisa que aprendi com ele é de não se colocar no lugar da expectativa do outro: eu sou eu, paizinho é paizinho. O trabalho é a minha vida. A educação é a minha vida. Continuo até hoje formando educadores. A base central do meu processo educativo reside justamente em devolver a pessoa para ela própria. O paizinho dava uma definição incrivelmente verdadeira sobre o que é o ato de educar: que é um ato político amoroso. Na minha forma de trabalhar, mantendo o legado que recebi dele e transformei, eu diria que educar é marcar de forma generosa o corpo de outro."

Ana Maria Araújo Freire, ou Nita Freire, 87 anos. Educadora e viúva de Paulo Freire

"Conheço Paulo a minha vida toda, ele foi aluno do colégio do meu pai. Lembro de Paulo uns dois anos depois que ele tinha entrado no colégio. Ele se ofereceu para fazer um trabalho, porque era bolsista e queria dar uma retribuição, e passou a ajudar um pouco a minha mãe nas disciplinas. O admirei desde sempre pela forma generosa e amável com a qual tratava as pessoas. Comigo, isso foi de uma profundidade muito grande.

Paulo foi muito coerente. Ele dizia que a gente não pode admitir que se diga e se escreva diferente daquilo que a gente pratica, que temos que procurar atuar na diferença mínima possível daquilo que a gente disse e escreveu. É muito fácil você conviver com um homem que é tolerante. Paulo nunca reclamou e nunca disse que eu deveria aprender algo. Ele nunca disse uma frase indelicada a mim. Nunca retrucou. Esse ato de Paulo é muito difícil num homem. Muito difícil mesmo. Porque, em geral, os homens gostam de se queixar das mulheres. E ele teria até razão de se queixar, mas nunca disse nenhuma coisa que pudesse me ofender ou deixar triste.

Ele falava com entusiasmo da sua leitura de mundo, do Brasil e sobretudo do Nordeste. Paulo fixou as suas raízes no Recife. Paulo é um pensador recifense. Paulo aderiu a essa cultura nordestina e se colou a ela. Criou raízes profundas, se nutrindo disso. Ele dizia que ‘a minha recificidade explica a minha pernambucanidade; assim como minha pernambucanidade explica a minha brasilidade, a minha brasilidade explica a minha latinoamericanidade e a minha latinoamericanidade me faz um homem do mundo’. Com isso, Paulo estava dizendo que ninguém consegue, e não conseguiu até hoje, atalhar o caminho e logo se fazer um homem do mundo. Não. Você tem que criar raízes profundas no local e na cultura onde nasceu.

Fora o aspecto mais formal, sempre foi um homem muito simples, muito sério, muito honesto e tolerante. Paulo aceitava muito as pessoas. Dizia que se fossemos iguais, ficaríamos na mesmice e precisávamos do diferente. O que nós não podemos ser é tolerante com o antagônico, ele falava. Então, eu diria que se Paulo vivo estivesse, ele teria um discurso antagônico às autoridades brasileiras. Paulo nunca fez doutrinação. Paulo sempre pregou a autonomia e a liberdade das pessoas. E em casa também era assim.

Há pessoas que leram a obra de Paulo e que não concordam, mas essas pessoas não atacam Paulo da forma alucinada e necrófila como ele vem sendo atacado. Quem ataca Paulo é quem é fechado, quem nunca leu a sua obra para avaliar. Essas pessoas que falaram ‘basta Paulo Freire’ nas passeatas, que ele ‘serve para doutrinar’ e que é ‘comunista’ nunca tocaram num livro do Paulo.

Sinto Paulo muito presente. Para mim, falar de Paulo no passado fica complicado. Eu sinto ele presente. Tem gente que fala, Nita, 24 anos que Paulo morreu e você fala dele no presente. Eu digo: o mundo inteiro ainda homenageia Paulo como um homem de ideias vigentes, de ideias e de comportamentos atuais. Como é que eu, que fui sua esposa, que o amei profundamente, vou considerar Paulo uma coisa passada? Paulo está presente em mim e em todos os dias da minha vida."

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