Na infância, frequentaram pouco a escola e por isso não foram alfabetizadas. No início da adolescência, diante das dificuldades financeiras das famílias, começaram a trabalhar como empregadas domésticas em casas da classe média do Recife, onde permanecem até hoje. Passaram a vida adulta sem saber ler e escrever. Aos poucos estão mudando essa realidade. Marlene Maria Félix, 54 anos, já está alfabetizada. Marlene Maria de Morais, 66, está no processo de letramento. Neste bicentenário da Independência, celebrado nesta quarta-feira, 7 de Setembro, o Brasil tem ainda uma dívida histórica com 10 milhões de cidadãos. Eles integram o universo de analfabetos com 15 anos ou mais de idade.
Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2019, indicador mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referente a analfabetismo. O índice é de 6,1% da população nessa faixa etária. Em Pernambuco, chega a 11%, o que representa 816 mil pessoas sem saber ler e escrever. No Recife e Região Metropolitana, conforme o IBGE, havia 5,1% de analfabetos em 2019, um universo de 164 mil moradores. Embora os percentuais tenham variado pouco nos três anos anteriores (de 2016 a 2018), a perspectiva é de agravamento nos próximos anos por causa da pandemia de covid-19.
PROBLEMA SECULAR
"Em pleno século 21 o Brasil ainda se debate com a questão do analfabetismo. Alfabetizar jovens e adultos não é uma tarefa simples, mas precisa ser feita. A educação, como prevê a Constituição, é um direito de todos. É dever do Estado, da família e da sociedade oferecer educação que desenvolva plenamente as pessoas ao longo da vida. E esses 10 milhões de brasileiros nem sequer conseguiram dar a largada nesse processo", destaca o ex-secretário de Educação de Pernambuco, ex-reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e atual titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, da Universidade de São Paulo (USP), Mozart Neves Ramos.
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Neste período de debate eleitoral, o assunto precisa entrar na agenda dos candidatos à presidência do Brasil e aos governos estaduais. "Além desses 10 milhões de analfabetos, tem os chamados analfabetos funcionais, que não são capazes de compreender e interpretar um texto simples. Nesse caso, há 38 milhões de pessoas. Três em cada 10 brasileiros na faixa etária de 15 a 64 anos encontram-se nessa condição", afirma Mozart. Em 2024, ou seja, na gestão dos próximos governantes, a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) é que o analfabetismo deixasse de existir, o que provavelmente não será realidade.
"O País precisa olhar de modo mais atento para essa situação, pois coloca em risco o seu próprio futuro em um ambiente planetário no qual as nações desenvolvidas conseguiram fazer isso há mais de um século. O Brasil só será verdadeiramente independente quando for capaz de oferecer uma educação plena para todos os brasileiros. Mas estamos longe disso", complementa Mozart, que defende uma grande mobilização nacional.
ALFABETIZAÇÃO
A preocupação não deve ser somente com adolescentes, jovens e adultos que não foram alfabetizados na idade certa. Entre os estudantes da educação básica, os mais prejudicados com a pandemia do coronavírus foram justamente os que estavam na fase de alfabetização. Com aulas remotas por causa do fechamento das escolas, muitos tiveram dificuldades no aprendizado. Nesta quinta-feira (08) se celebra o Dia Mundial da Alfabetização, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) 55 anos atrás.
Entre 2019 e 2021 houve um aumento de 66,3% na quantidade de garotos de 6 e 7 anos de idade que, segundo seus responsáveis, não sabiam ler e escrever. O levantamento foi feito pelo Movimento Todos pela Educação a partir de dados do IBGE. O número de crianças não alfabetizadas nessa faixa etária passou de 1,4 milhão em 2019 para 2,4 milhões em 2021, ou seja, um crescimento de um milhão de estudantes.
SUPERAÇÃO
Marlene Maria Félix é ex-aluna da Escola Municipal Karla Patrícia, que fica em Boa Viagem, Zona Sul do Recife. Foi lá que, em 2017, começou a alfabetização. Mesmo local que hoje estuda Marlene Maria de Morais. Ambas são de turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
"Eu fazia parte do grupo de analfabetos. Graças a Deus não estou mais. Agora sei ler. Pedi muito a Jesus que me ensinasse a ler", conta Marlene Félix. "Ninguém me engana mais. Posso ver minha fatura do cartão e saber o que foi comprado sem precisar de ajuda", exemplifica Marlene, pouco depois de encerrar um telefonema justamente com a operadora do cartão de crédito.
"Mudou muito pois agora sei meus direitos, posso gritar por eles. Passei muito sufoco porque não lia. Perdi as contas das vezes que peguei ônibus errado. Cresci sonhando em aprender a escrever o nome da minha mãe, Maria do Carmo. Mas minhas patroas não me deixavam estudar", lamenta Marlene Félix.
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Sua mãe teve 18 filhos. A família é de Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata. Com 12 anos ela veio para Recife com três irmãs mais velhas, que tinham entre 13 e 15 anos. Todas viraram empregadas domésticas e não continuaram os estudos nessa época.
"Quando a gente não sabe ler é como se vivesse no mundo escuro. Agora eu posso dizer se está certo ou errado. Nessa época de eleição mesmo chega um monte de político junto dos analfabetos. Oferece uma dentadura, tijolo, uma feira, em troca de voto. Eu digo desapareça pois agora entendo todos os meus direitos. Ninguém mais me pára, vou continuar estudando", garante Marlene Félix, que não deu atenção a quem disse que ela estava velha e deveria esquecer esse "negócio de estudar". "Tem muita gente que desestimula, infelizmente."
SEM DESISTIR
Marlene Maria de Morais também iniciou a lida como empregada doméstica aos 11 anos de idade. Atualmente mora com a família que começou a trabalhar 44 anos atrás, em Boa Viagem. "Cheguei o filho da minha patroa tinha 3 meses de vida. Hoje está com 44 anos", relata Marlene Morais.
Quando era criança, a dificuldade para aprender era porque não enxergava direito. "Sou míope e mesmo sentando na frente, na escola, não entendia as coisas. Aprendi muito pouco", diz Marlene Morais.
Decidiu estudar em 2020. A pandemia atrapalhou, mas não a fez desistir. "Consigo escrever um pouquinho. Tenho dificuldade em copiar as letras do quadro para o caderno, às vezes me dá um desespero. Mas nunca é tarde para aprender. Quero ficar bem sabida", afirma Marlene Morais, que mais jovem sonhou em ser médica "Queria ser doutora de crianças ou de idosos".
REFORMA CURRICULAR
Atualmente a rede municipal de Recife oferta Educação de Jovens e Adultos em 101 escolas, somando 239 turmas. Há 4.930 alunos. A pandemia provocou uma evasão de 35%, segundo a Secretaria de Educação da capital. Uma das ações para trazer de volta esses estudantes é a busca ativa.
"As matrículas da EJA ficam abertas o ano todo justamente para facilitar o acesso", explica a secretária executiva de Gestão Pedagógica do Recife, Juliana Guedes. A gestão está tentando, junto ao Ministério da Educação, retomar o ProJovem, programa federal voltado para educação de jovens e adultos que paga um auxílio financeiro e promove também formação profissional.
A Secretaria Municipal de Educação também iniciou uma reestruturação no currículo da EJA e está implementando trilhas de aprendizagem. "O grande desafio, não só na EJA, mas em toda educação básica, é recompor a aprendizagem pois a pandemia trouxe muitos prejuízos", observa Juliana.
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