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Literária

Por Fábio Lucas

Biblioteca pública digital

Experiência da BibliON em São Paulo é modelo para o país, na ampliação do acesso à leitura e na interação com bibliotecas físicas

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Fábio Lucas

Publicado em 19/12/2023 às 16:37
Pierre André Ruprecht é da SP Leituras - Divulgação

Diretor executivo da SP Leituras, organização social de cultura que administra as bibliotecas públicas do Estado de São Paulo, em forma de parceria com o governo, Pierre André Ruprecht fala nesta entrevista ao JC sobre a biblioteca digital gratuita BibliON (biblion.org.br). Com apenas um ano e meio de criada, e já apresentando um grande impacto na leitura dos brasileiros. Além das duas bibliotecas estaduais oficiais, a organização faz a gestão do Sistema Estadual de Bibliotecas (Siseb), que reúne mais de 500 bibliotecas municipais e comunitárias. Mas a programação de atividades e eventos é aberta a todo o país. “Biblioteca não é prateleira com livros. Biblioteca é ação bibliotecária. Implica em ação cidadã. É um ponto de encontro cultural, preenche várias funções. A nossa ideia era criar um ecossistema em que a biblioteca pública presencial e a biblioteca pública digital fizessem parte do mesmo ambiente. E contribuíssem uma com a outra”, explica. Nesta entrevista, Pierre Ruprecht traz os números da BibliON até o momento, conta como tudo funciona e defende a biblioteca digital acessível à população.

JC - Como surgiu a BibliON?
Pierre André Ruprecht - A gente trabalha há muitos anos com bibliotecas, com o conceito de biblioteca viva, que tem o foco nas pessoas e nas comunidades. Observamos o surgimento das bibliotecas digitais. Algo mais ou menos natural, uma vez que tecnologia para isso existe há muito tempo. No Brasil não havia modelo de negócio para a biblioteca pública digital. Existia para biblioteca universitária, porque o número de usuários é conhecido. Diferente da biblioteca pública, onde virtualmente entra quem quiser.

JC - E quando o cenário mudou?
Pierre André Ruprecht - Em 2019, surge pela primeira vez um agregador de conteúdo para bibliotecas públicas. Imediatamente entramos em contato e fizemos um acordo, no primeiro momento sem envolver pagamento nenhum, para um projeto piloto. Oferecendo acesso a quem era sócio da Biblioteca de São Paulo ou da Biblioteca Parque Vila Lobos – estamos falando de 60 mil pessoas, aproximadamente, que tinham a carteirinha dessas bibliotecas. O piloto ficou operando um ano e alguns meses. Depois fizemos um projeto para o governo do estado de São Paulo, para constituir a BibliOn. Em junho de 2022, inauguramos a BibliOn.

JC - Qual a importância do modelo de negócio?
Pierre André Ruprecht - Para que os autores sejam remunerados e tenham seus direitos, como os editores. A outra grande questão era discutir uma biblioteca pública digital sem jogar contra as bibliotecas públicas presenciais. Tivemos muita preocupação com isso, porque administramos duas bibliotecas presenciais em SP, referências no estado.

JC - Como a biblioteca pública pode migrar para o ambiente digital?
Pierre André Ruprecht - Uma biblioteca pública faz muito mais do que simplesmente emprestar livros. A gente ouvia muito a pergunta: “Com a vinda do Google, faz sentido biblioteca pública?” Se você acha que biblioteca é uma prateleira com livros, talvez não faça. Mas biblioteca não é prateleira com livros. Biblioteca é ação bibliotecária. Implica em ação cidadã. É um ponto de encontro cultural, preenche várias funções. A nossa ideia era criar um ecossistema em que a biblioteca pública presencial e a biblioteca pública digital fizessem parte do mesmo ambiente. E contribuíssem uma com a outra.

JC - Como isso aconteceu?
Pierre André Ruprecht - Partimos do conceito de que a biblioteca digital deveria funcionar como uma espécie de braço das bibliotecas públicas presenciais, oferecendo uma série de serviços, entre eles, empréstimo de livros. Um dos projetos foi o de criação de uma rede de clubes de leitura no estado de SP. As bibliotecas presenciais, normalmente municipais, têm muita dificuldade de aquisição de acervo, de modo geral, e portanto de se manter atualizadas. Estimulamos as bibliotecas locais a fazerem seus clubes de leitura – presenciais, virtuais, do jeito que quisessem – e a gente asseguraria os livros para os participantes. Esse foi o primeiro trabalho de parceria com as bibliotecas físicas.

JC - Que papeis a biblioteca pública digital pode desempenhar?
Pierre André Ruprecht - Estamos muito preocupados com o que chamamos – numa acepção bem ampla – de letramento digital. E de letramento midiático. A gente identifica essas duas tarefas, que evidentemente devem acontecer na escola, mas também na biblioteca pública, que é responsável pela educação continuada das pessoas, com respeito ao conhecimento e à informação. Estamos tentando carrear programas de letramento digital, auxiliando na dinamização das bibliotecas públicas e comunitárias do estado de SP.

JC - Como tem sido a repercussão, depois de apenas um ano e meio?
Pierre André Ruprecht - Quando elaboramos o primeiro projeto, tínhamos que fazer uma estimativa de quantas pessoas iriam usar. Porque isso influi no orçamento. Os conteúdos que estão na biblioteca, o usuário não paga, mas a BibliON paga. E paga com recurso público, tem que ser gerido com muito cuidado. Alguns podem ter a impressão de que, se é digital, está liberado. Não, tem que ser pago. O autor tem que receber, o tradutor, o editor, toda a questão dos direitos envolvida. Cada exemplar emprestado é pago. Quando fizemos a projeção de público, houve gente que nos chamou de malucos. Fizemos benchmarking com alguns países, mas nos baseamos principalmente na experiência do Chile. A biblioteca digital chilena é nacional, oferecida a todo residente no Chile, ou todo chileno residente no exterior. Fizemos a projeção, e estamos suplantando as metas.

JC - Todos podem entrar na BibliON?
Pierre André Ruprecht - Sim, qualquer pessoa pode acessar. Mas para tomar um livro emprestado, e fazer certas coisas, como registrar seus preferidos, precisa se associar. Para se associar, basta responder a algumas perguntas no site ou no aplicativo. Juntamos até agora 230 mil sócios. São de qualquer lugar, inclusive do exterior. Cerca de dois terços são do estado de SP, onde se concentrou a divulgação. Do terço restante, uns 30% são de outros estados do Brasil, e 2%, 3% de outros países.

JC - E quantos livros foram emprestados até agora?
Pierre André Ruprecht - Foram pouco mais de 524 mil empréstimos. O que faz com que provavelmente essa seja a biblioteca que mais empresta livros no Brasil. Estamos hoje com cerca de 17 mil títulos. O número vai subindo devagarinho. O foco é em literatura, em seus vários gêneros. Também humanidades e ciências em nível de difusão, pois como a maior parte das bibliotecas públicas, não somos uma biblioteca universitária ou especializada - quem sabe um dia?

JC - Como o acervo chega aos leitores?
Pierre André Ruprecht - Quando se pensa em biblioteca digital, a imagem que vem é um pouco de Netflix, com os conteúdos lá para serem baixados. Existem as que são assim, com um algoritmo que sugere o que se leia. Na nossa biblioteca, o “algoritmo” é um conjunto de bibliotecários que fazem pesquisa permanente do que está sendo publicado, e do que o público está pedindo. Você pode indicar livros para a BibliON, assim como pode indicar nas nossas bibliotecas físicas. Há livros novos todo dia. E também livros que deixam de ser oferecidos digitalmente, todo dia.

JC - E a relação com as editoras, como se dá?
Pierre André Ruprecht - Existem duas maneiras de uma editora ter seus livros na BibliON. As editoras podem negociar com agregadores de conteúdos digitais, que funcionam, a grosso modo, como as distribuidoras do livro físico, e a BibliON compra dos agregadores. A outra maneira, principalmente para as pequenas editoras, para as regionais, para aquelas que estão um pouco fora do mercado tradicional de distribuição: elas podem fazer diretamente com a BibliON um contrato de cessão negociada de direitos.

JC - E o autor independente, consegue?
Pierre André Ruprecht - Consegue, tratando direto com a BibliON. Esse é um potencial de crescimento muito grande. Assim como estamos estimulando a produção local, através das bibliotecas, a ideia é criar um canal alternativo interessante para os autores independentes ou os pequenos editores independentes.

JC - Qual o perfil dos livros emprestados?
Pierre André Ruprecht - Se formos comparar os cinco mais lidos da BibliON com os cinco mais lidos das revistas e jornais, vemos algumas diferenças interessantes. A primeira é que nos cinco mais lidos da BibliON, embora haja literatura de todo tipo, inclusive best-seller e autor internacional, quatro são autores brasileiros. Porque temos uma curadoria que sugere a leitura. Outra coisa interessante é que dos cinco, três são mulheres. C. C. Hunter é a mais lida. Mas logo em seguida vem a Aline Bei, autora contemporânea brasileira, com “O peso do pássaro morto”. É a autora mais lida na BibliON, na soma das outras obras. Depois vem a Elaine Baeta, que escreve para jovens, com “O amor não é óbvio”. E a Conceição Evaristo, com “Olhos d’água”.

JC - Qual o ganho das editoras em estar numa biblioteca digital?
Pierre André Ruprecht - Em cada empréstimo, a editora recebe uma fração de direito autoral referente ao livro. Tem algumas modalidades pelas quais esses direitos são negociados, na prática internacional. Uma das modalidades é o pagamento por uso, por leitura. Há também o modelo clássico para livros digitais, que é o de número de checkouts: a biblioteca compra 30 empréstimos de tal titulo. Uma vez emprestado 30 vezes, a biblioteca deve comprar de novo os 30 checklouts. Outro modelo é chamado de perpétuo, que na verdade é perpétuo enquanto dura, e funciona como o mercado físico. Como a gente tem nas nossas bibliotecas físicas: compro três exemplares do mesmo título, e o máximo que consigo emprestar é três ao mesmo tempo.

JC - E aí os leitores precisam esperar pelo livro desejado, mesmo sendo digital?
Pierre André Ruprecht - Como toda biblioteca pública, temos uma fila de espera. Não é para todos os títulos, e corresponde mais ou menos a um quinto. Ou seja, de cada cinco pessoas que pedem um livro, quatro são atendidas na hora e uma tem que esperar porque o livro que ela pediu está emprestado para outra pessoa. A demora depende. Tem fila de espera que demora dez dias. Na hora que devolve, libera para o próximo. Quando é best-seller, a fila é maior. Se a gente não fizesse a curadoria, o que aconteceria? Estaríamos com a demanda concentrada nos best-sellers, usando recurso público para financiar fortemente dez, doze títulos. E a missão da biblioteca pública é trabalhar a bibliodiversidade.

JC - Que impactos já podem ser vistos na integração da BibliON com as bibliotecas físicas?
Pierre André Ruprecht - A aposta nos clubes de leitura é interessante porque, claro, você forma leitores, mas forma principalmente comunidades de leitura. E missionários da leitura. Quem participa dos clubes, normalmente, é aquela pessoa que na pesquisa Retratos da Leitura aparece como terceira pessoa mais importante na indicação de livros: o amigo, depois de família e da escola.

Biblioteca Villa Lobos, em São Paulo - Ricardo Matsukawa

 

JC - Quais os planos para o próximo ano?
Pierre André Ruprecht - Estamos desejando consolidar a parceria com as bibliotecas públicas. Vamos investir nessas programações. Fazemos através do Siseb, ligados à BibliON, por ano, algo como 150 ações, fora os clubes de leitura. Ações presenciais e virtuais. Outra coisa é conseguir trazer recursos para continuar ampliando a oferta.

JC - Qual a prioridade no aproveitamento desse potencial?
Pierre André Ruprecht - Oferecer a biblioteca digital, por exemplo, nas periferias das cidades, onde a questão do acesso ao livro é muito complicada. E principalmente com a preocupação da bibliodiversidade, para o leitor conhecer um pouco de tudo que se produz. Esse deve ser o foco: buscar os nichos onde a biblioteca faz mais diferença.

JC - As pessoas leem no aplicativo?
Pierre André Ruprecht - Podem ler no celular, que é a maioria. Dois terços das pessoas usam a BibliON pelo celular. Mas pode ler pelo computador ou tablet. Cada pessoa pode registrar até 6 dispositivos diferentes, pode começar a ler no celular, depois continua no tablet. Uma grande vantagem é que, para a grande maioria dos títulos, quando você lê, não consome dados. Porque a BibliON, quando você pega o livro emprestado, baixa para o dispositivo. Termina o período de empréstimo, ele sai do dispositivo. Você pode ter até dois livros emprestados ao mesmo tempo na estante.

JC - E como tem sido o feedback dos leitores?
Pierre André Ruprecht - Há uma predominância feminina no público, de mais ou menos 60% a 65%. Temos poucos leitores infantis, porque também não estimulamos, por acharmos que a leitura digital não é adequada para crianças pequenas. O ideal seria depois dos 10 anos de idade. Mas oferecemos títulos para que os pais leiam para crianças. Dos 16 aos 40, é a maior concentração de leitores. E já recebemos uma quantidade razoável de feedbacks de gente dizendo que a BibliON estava permitindo ler, sem ler cópia pirata. A comodidade é citada como vantagem, o fato de poder ler no ônibus, no intervalo de uma atividade, no lugar que estiver. E outros que usam como um seletor: começa a ler por lá, e se gostar, compra o livro físico.

JC - Qual a sua visão de um confronto de logo quando a leitura digital surgiu, que era leitura digital versus leitura de papel? Qual o papel da leitura digital?
Pierre André Ruprecht - De fato, existe uma questão complicada no confronto da cultura com o digital. O digital é basicamente sustentado pelo interesse econômico, que às vezes não vai na direção que uma política pública deve ir. Infelizmente, a lógica dominante do digital é a da remuneração imediata: sou estimulado a clicar muitas vezes. Isso acaba determinando um comportamento muito ruim, que é o de que só me movo se tiver um prazer imediato ligado a isso. Qualquer aproximação que eu tenha que fazer, mais duradoura, uma observação, algo mais contemplativo, é eliminado dessa lógica. Não tem lugar. E a leitura é uma dessas atividades. A leitura exige que você se dê para ela. Esse é um confronto perigoso. Há uma visão mais ou menos clara, hoje, dos educadores, de que telas de um modo geral devem ser evitadas nos primeiros anos de vida. E depois devem ser introduzidas de modo muito controlado. Nada de 6, 7 horas de tela todo dia, como a gente está vendo hoje. As pessoas têm que se perguntar: estou navegando para que? Por isso que digo que é papel das bibliotecas públicas entrar nesse tema do letramento digital.

JC - E a leitura no digital?
Pierre André Ruprecht - A leitura digital é um fato. E é diferente, sim, da leitura presencial. Na nossa visão, existe espaço para ambas. Um leitor deve experimentar ambas, e usar aquela que lhe chega mais à alma, no momento em que ele puder fazer uma escolha madura. Pessoalmente, prefiro ler livros impressos. A questão do corpo do livro, para mim, é importante. Para crianças, é fundamental. Porque tela, para elas, é tudo a mesma coisa. Tela é uma coisa só. Livro, cada um é uma coisa.

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