As mortes no trânsito provocadas por motoristas alcoolizados e/ou em alta velocidade ainda contam com a benevolência da sociedade, polícia e Justiça. Foto: Heudes Régis/Arquivo JC Imagem
A injustiça que tanto dói é premissa quando se trata dos crimes de trânsito que matam. Atropelamentos e colisões, quase sempre movidos a excesso de velocidade, irresponsabilidade ao volante e álcool. Casos que, mesmo com todos esses componentes, ainda usufruem da benevolência da sociedade, da segurança pública e da Justiça em todas as suas instâncias. Exemplos não faltam para comprovar essa verdade. No início do mês, o motorista Gabriel Victor Lira Pimentel de Barros, hoje com 23 anos, foi condenado por homicídio culposo (sem intenção) por atropelar e matar, em alta velocidade e alcoolizado, o adolescente Thiago Pablo Ferreira de Andrade, então com 17 anos, que andava de skate em Candeias, em Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife. A morte aconteceu em abril de 2018.
É muito, muito errado o motorista que matou meu filho ser condenado por homicídio culposo. Principalmente porque ele estava correndo e embriado. Mas eu vou lutar até o fim. Vou recorrer da decisão. Sei que isso acontece porque somos pobres e o motorista é rico”, Zeneide Andrade, mãe de Thiago
Mesmo tendo sido preso em flagrante na época e com todas essas características pesando contra ele, o motorista foi colocado em liberdade após pagar R$ 19 mil de fiança e, agora, na sentença em primeira instância, condenado ao regime semiaberto. A pena foi de seis anos, quase o máximo permitido pelo Artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que chega a oito anos. Mas não foi em regime fechado. Com o detalhe de que, na decisão, o juiz da 3ª Vara Criminal de Jaboatão dos Guararapes, Carlos Fernando Carneiro Valença Filho, determina que o motorista aguarde em liberdade todas as fases recursais. Ou seja, quando e se um dia for mesmo cumprir a pena de seis anos, Gabriel Victor Lira apenas dormirá na prisão, podendo, durante o dia, sair para trabalhar e estudar. Terá quase uma vida normal.
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Enquanto isso, a mãe do skatista Thiago Andrade, diz Zeneide Andrade, chora a morte do filho e engole a revolta da quase certeza de impunidade. “É muito, muito errado o motorista que matou meu filho ser condenado por homicídio culposo. Principalmente porque ele estava correndo e embriado. Mas eu vou lutar até o fim. Vou recorrer da decisão. Sei que isso acontece porque somos pobres e o motorista é rico”, afirmou Zeneide Andrade, mãe de Thiago.
A leitura de que a punição para os crimes no trânsito são mais comuns quando as vítimas têm mais recursos financeiros – vamos definir assim – se confirma com o histórico de casos de crimes do tipo no Estado. Um dos que mais tiveram repercussão no Recife foi o da morte da auxiliar de enfermagem Aurinete Gomes de Lima, 33 anos, em 2008. Aurinete morreu na hora, o marido Wellington Lopes e a filha, que na época tinha seis anos, ficaram gravemente feridos quando o carro em que estavam foi praticamente destruído pela caminhonete dirigida pelo empresário Alisson Jerrar Zacarias dos Santos, após avançar um semáforo da Avenida Domingos Ferreira, em Boa Viagem.
Já imagino o que as famílias vão passar. Vão sofrer muito e pouco vão conseguir. Mesmo que o motorista venha a ser indiciado pela polícia, a luta na Justiça será pesada. Será injusta”, Wellington Lopes, que perdeu a mulher numa colisão, em entrevista ao JC, em 2017
O condutor estava a mais de 100 km/h e alcoolizado. Tinha virado a madrugada numa boate. Onze anos depois do crime e tendo passado todo o tempo livre, Jerrar foi condenado a oito anos de prisão, mas em regime semiaberto. Até hoje não passou uma única noite na prisão e segue levando uma vida normal, enquanto seus advogados recorrem da condenação nas diversas instâncias judiciais. A família de Aurinete também segue a vida, mas ruminando, por todos esses anos, a angústia provocada pela impunidade.
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Há mais exemplos. Também no início do mês, o ciclista e auxiliar de cozinha César Filipe Gomes da Silva, 30 anos, foi atropelado, arrastado por 50 metros e morto enquanto pedalava na Ponte João Paulo II, que compõe o chamado Viaduto Joana Bezerra, na Ilha do Leite. O réu confesso é o empresário do ramo de eventos Hélio Mendonça, 33, que dirigia uma caminhonete e sequer parou para prestar socorro aos ciclistas – César Filipe pedalava com outros dois amigos e um deles ficou ferido. O empresário só se apresentou à polícia porque foi identificado, trafegando aparentemente em alta velocidade, pelas câmeras da CTTU. Prestou depoimento, garantiu que não tinha bebido – embora integre uma banda musical e tenha passado a noite numa festa open bar – e que não tinha visto o trio pedalando no viaduto. Segue livre, enquanto os parentes do auxiliar de cozinha choram a segunda morte por atropelamento na família.
Outro caso de morte no trânsito que também coleciona episódios de impunidade é o atropelamento do casal de amigos Isabela Cristina de Lima, 26 anos, e Adriano Francisco dos Santos, 19, esmagados quando estavam na porta de casa, numa comunidade às margens da Avenida Desembargador José Neves (Canal do Jordão), em Boa Viagem, pelo empresário Pedro Henrique Machado Villacorta, 28 anos, que estava alcoolizado no dia do atropelamento e tinha um histórico de fazer vergonha como condutor: acumulava em 2016, época da colisão, 116 pontos na CNH resultantes de 27 multas registradas entre 2012 e 2016. O empresário foi retirado do local pela PM e levado, mesmo sem ferimentos, para atendimento na UPA da Imbiribeira, no lugar de ser encaminhado à delegacia de polícia. Está livre até hoje. Villacorta, inclusive, por pouco não escapa do julgamento por homicídio doloso. O juiz do caso desclassificou o crime para culposo, mesmo o MPPE tendo denunciado por dolo eventual. Mas, em 2017, o TJPE manteve a denúncia dos promotores.
Sei que é difícil, que já são quase três anos do assassinato – como devemos chamar –, mas tenho esperança de ver o motorista julgado por homicídio com intenção (doloso). Não vamos desistir”, Alda Valéria, viúva de Isabela, esmagada na calçada de casa
Uma das poucas exceções é a tragédia da Tamarineira, como ficou conhecida a violenta colisão ocorrida em novembro de 2017, na Zona Norte do Recife e que destruiu a família do advogado Miguel Arruda da Motta Silveira Filho, 46, que perdeu a esposa Maria Emília Guimarães, 39, o filho mais novo Miguel Arruda da Motta Silveira Neto, 3, e a babá Roseane Maria de Brito, 23, grávida de quatro meses. O advogado e a filha mais velha, Marcela Guimarães, 5, sobreviveram, mas a garota ficou com sequelas. O veículo da família foi destroçado pelo condutor João Victor Ribeiro de Oliveira Leal, 25, que bebeu o dia inteiro e avançou o semáforo a 108 km/h, 22 segundos depois de o equipamento ter ficado vermelho.
A alteração do Artigo 302 do CTB terminou dificultando a punição dos crimes de trânsito que resultam em morte ou em lesão corporal grave porque, ao fazer referência a eles e manter o enquadramento como crime culposo, mesmo que com pena maior – de cinco a oito anos –, praticamente inviabilizou o uso do dolo eventual, pelo Código Penal. Se você não tiver fortes provas para constatar o dolo eventual, que é quando a pessoa não quer provocar dano, mas tem atitudes que levam a isso, tem que tratar o crime como culposo (sem intenção) e usar o CTB. Mesmo com uma pena maior, ele segue sendo visto como culposo”, Paulo Jean, delegado de Delitos de Trânsito
João Victor foi preso em flagrante e, por agilidade da família – bem informada e articulada, evitou que ele fosse levado da unidade de saúde para onde foi encaminhado –, foi mantido preso, sendo indicado e denunciado por triplo homicídio doloso (dolo eventual) e dupla lesão corporal grave. Segue preso e já teve diversos pedidos de habeas corpus negados. Ainda não há data certa, mas o julgamento no Tribunal do Júri é praticamente certo, apesar de a defesa seguir recorrendo. De todos os casos citados na reportagem, é o único que tem essa certeza.
“A alteração do Artigo 302 do CTB terminou dificultando a punição dos crimes de trânsito que resultam em morte ou em lesão corporal grave porque, ao fazer referência a eles e manter o enquadramento como crime culposo, mesmo que com pena maior – de cinco a oito anos –, praticamente inviabilizou o uso do dolo eventual, pelo Código Penal. Se você não tiver fortes provas para constatar o dolo eventual, que é quando a pessoa não quer provocar dano, mas tem atitudes que levam a isso, tem que tratar o crime como culposo (sem intenção) e usar o CTB. Mesmo com uma pena maior, ele segue sendo visto como culposo”, critica o delegado de Delitos de Trânsito, Paulo Jean.
O que mudou no CTB foi o tratamento dado a quem bebe, dirige e mata no trânsito (ou causa lesões graves ou gravíssimas), conforme o § 3º do Artigo 302. Confira:
Artigo 302 § 3º Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.