Devido à crise econômica, Pernambuco autoriza retirada em massa de cobradores de ônibus do Grande Recife

Atualmente, após a liberação oficial, 67% das linhas do sistema estão operando sem o profissional e com 2.386 motoristas atuando na dupla função, ou seja, dirigindo, recebendo dinheiro e passando troco
Roberta Soares
Roberta Soares
Publicado em 18/09/2020 às 9:00
Cobrador em ônibus é "artigo de luxo": Apenas 18 do sistema do Grande Recife têm o profissional Foto: FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM


A crise econômica provocada pela perda de demanda do transporte público forçou o governo de Pernambuco a autorizar a retirada em massa dos cobradores dos ônibus em operação na Região Metropolitana do Recife. Atualmente, após a liberação oficial, 67% das linhas do sistema estão operando sem o profissional e com os motoristas atuando, em quase toda sua totalidade, na dupla função, ou seja, dirigindo, recebendo dinheiro e passando troco. Considerando a frota de antes da pandemia, o percentual de linhas sem cobradores sobe para 76%. E 2.386 motoristas estão atuando na dupla função.

Já são 267 linhas de ônibus operando sem o cobrador na RMR. No pré-pandemia, quando a retirada dos profissionais tinha sido retomada após liberação do governo, o processo já estava em plena execução, mas o ritmo era menor e havia critérios técnicos. As linhas tinham que ter baixo número de pagamento em dinheiro por viagem. A maior parte delas, inclusive, tinha uma média de zero a sete passageiros pagantes em dinheiro. Em outras, essa demanda oscilava entre oito e 11 passageiros pagantes em espécie. Mesmo assim, o sistema já acumulava 205 das 399 linhas sem o profissional. Na crise sanitária e por causa dela, a operação sem os cobradores foi ampliada de 50% para 70%. Um comparativo com o ano passado revela a agilidade na exclusão dos profissionais do sistema. Em maio de 2019, eram 58 linhas sem cobrador. Até o dia 5 de novembro o total chegou a 126.

"Foi uma medida de urgência para ajudar no reequilíbrio do sistema. Não tínhamos opção. O cobertor do setor é muito curto. Prefiro ter a frota na rua para atender à população que precisa do transporte público do que não ter. Os encargos são altos. E como as empresas aderiram às MPs de garantia do trabalho, as demissões estão proibidas. Pelo menos até outubro/2020, quando expiram as MPs. E a autorização é algo provisório, experimental. Depois que a pandemia passar, todas as linhas serão revistas " - Marcelo Bruto, secretário de Desenvolvimento Urbano de Pernambuco

JC IMAGEM - No pré-pandemia, quando a retirada dos profissionais tinha sido retomada após liberação do governo, o processo já estava em plena execução, mas o ritmo era menor e havia critérios técnicos

“Foi uma medida de urgência para ajudar no reequilíbrio do sistema. Não tínhamos opção. O cobertor do setor é muito curto. Prefiro ter a frota na rua para atender à população que precisa do transporte público do que não ter. Os encargos são altos. E como as empresas aderiram às MPs de garantia do trabalho, as demissões estão proibidas. Pelo menos até outubro/2020, quando expiram as MPs. E a autorização é algo provisório, experimental. Depois que a pandemia passar, todas as linhas serão revistas”, explica e garante o secretário de Desenvolvimento Urbano de Pernambuco, Marcelo Bruto, que gere o sistema de transporte da RMR. A liberação para a retirada dos cobradores foi dada pelo Grande Recife Consórcio de Transporte Metropolitano (CTM) que, segundo o secretário, tem autonomia para a decisão, sem necessidade de submetê-la ao Conselho Superior de Transporte Metropolitano (CSTM).

O governo de Pernambuco alega que a retirada atual dos cobradores representará uma economia de, aproximadamente, R$ 0,25 na tarifa A. Valores calculados considerando os valores do último reajuste tarifário, no início de 2019. Essa economia a que se refere o Estado é a quantia que deixaria de ser repassada à passagem num próximo aumento. Se todo o STPP (Sistema de Transporte Público de Passageiros da RMR) deixasse de operar com cobradores atualmente essa economia seria, também segundo o governo, de R$ 0,60 na tarifa. Com a pandemia, o sistema estaria operando com 70% da frota para atender a 57% da demanda de passageiros pré-pandemia.

THIAGO LUCAS - ARTES/JC

PROBLEMAS
A liberação para a retirada dos cobradores sem critérios técnicos, no entanto, é criticada por passageiros e operadores porque, em algumas linhas, o volume de usuários que pagam em dinheiro ainda é grande, o que gera aglomerações e provoca lentidão no embarque. Embora no início do processo, ainda em 2015, o setor empresarial pernambucano tenha garantido que a saída dos profissionais não implicaria, obrigatoriamente, na dupla função dos motoristas, a quantidade de profissionais que passaram a receber dinheiro e passar troco além de dirigir os coletivos só cresce. Os números comprovam. Antes da pandemia, os 2.386 motoristas na dupla função eram 1.280.

"A retirada de cobradores das linhas de ônibus é um processo gradativo que vem desde 2015 e que é fruto da evolução dos meios de pagamento da tarifa. E que foi acelerado durante a pandemia por uma necessidade real de redução de custo " - Marcelo Bandeira, diretor de Inovação da Urbana-PE

A retirada de cobradores e a consequente dupla função dos motoristas são, inclusive, o Calcanhar de Aquiles da relação entre rodoviários e empresários de ônibus. No início da pandemia, um dia antes de o governo federal conseguir a aprovação da MP 936 (criada para garantir o emprego e a renda), o setor demitiu aproximadamente três mil profissionais e a maioria eram cobradores - segundo denúncia oficializada pelo Sindicato dos Rodoviários de Pernambuco ao Ministério Público do Trabalho (MPT). A dupla função dos motoristas, inclusive, tinha o aval do próprio sindicato, aprovada numa convenção coletiva assinada pela antiga gestão da entidade.

“Mas a convenção coletiva venceu em julho e esse aval não existe mais. E, como já dissemos, a retirada dos cobradores, a dupla função dos motoristas e as demissões dos trabalhadores são as principais bandeiras da nossa gestão e das negociações esse ano. Não todas, mas algumas empresas do setor seguem retirando os cobradores, forçando o motorista a passar troco enquanto dirige e demitindo, apesar de terem aderido às MPs. E sabemos que essas linhas autorizadas nunca mais voltarão a ter cobradores. Esse discurso de provisório do Estado não convence”, denuncia o presidente dos rodoviários, Aldo Lima.

Segundo o sindicato, as empresas que têm retirado os cobradores em massa e forçado a dupla função são a Empresa Metropolitana, Caxangá, Transcol, São Judas Tadeu, Pedrosa, Borborema e o Consórcio MobiBrasil. O sistema tinha, antes da pandemia, entre 5 mil e 7 mil cobradores e a mesma quantidade de motoristas. O quantitativo de demissões na pandemia nunca foi informado oficialmente pelo setor empresarial. A categoria estima que menos da metade das três mil demissões denunciadas tenha sido revertida.

FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM - Cobradores de ônibus foram a categoria mais atingida nas demissões em massa. Na crise sanitária e por causa dela, a operação sem os profissionais foi ampliada de 50% para 70%

DEMISSÕES
A cobradora Maria Lucinalva Batista da Silva, que há oito anos trabalhava na empresa São Judas Tadeu (que integra o Consórcio Recife ao lado da Pedrosa e Transcol), foi demitida na segunda-feira (14/9). “Estão colocando muita gente para fora mesmo. Trabalhadores com 18, 20 anos de casa. Tem isso não. Eu, por exemplo, estava tentando a escolinha para motorista. Sou habilitada. Vinha cumprindo todas as etapas até ser demitida”, lamentou.

O cobrador Carlos Henrique de Moura Barbosa foi dispensado da empresa Caxangá na primeira leva de demissões no início da pandemia. Até hoje corre atrás de um nova oportunidade. “Antes da pandemia as empresas eram obrigadas a não demitir e, por isso, colocavam os profissionais na reserva, em outras funções. Mas agora é demissão certa”, afirmou.

TENDÊNCIA NACIONAL E MUNDIAL
“A retirada de cobradores das linhas de ônibus é um processo gradativo que vem desde 2015 e que é fruto da evolução dos meios de pagamento da tarifa. E que foi acelerado durante a pandemia por uma necessidade real de redução de custo”, argumenta o diretor de Inovação da Urbana-PE, Marcelo Bandeira. A Urbana-PE lembra que o total de cartões VEM ativos até o início da pandemia era de 1,345 milhão, o que representa 65% dos passageiros diários do sistema ( 2 milhões). Que desde 2013 foram distribuídos 650 mil cartões VEM Comum com a população. E que, além disso, tem uma ampla rede de vendas de cartões e recarga de créditos eletrônicos. Números, é claro, do pré-pandemia.

De fato, a tendência a que se refere a Urbana-PE é comprovada nos números da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Mais da metade dos sistemas de transporte urbano por ônibus do País já retiraram os cobradores e têm o pagamento eletrônico da tarifa. Quase 40% desses, inclusive, não têm mais nenhum profissional na operação. A NTU fez o levantamento com 105 sistemas de transporte por ônibus brasileiros.

Setransp/Divulgação - Governo de Pernambuco garante que autorização é algo provisório, experimental. Que depois que a pandemia passar, todas as linhas serão revistas
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