Por Cezar Martins
Associado Ameciclo e servidor público
Se discute nas redes sociais e na mídia sobre o expressivo aumento no valor do litro de gasolina semana passada. Alguns na defesa da Petrobrás - e dos lucros dos acionistas -, defendem o livre mercado, mas uma grande maioria ataca o governo de Jair Bolsonaro pelo descontrole do preço do combustível. Na guerra de memes, tudo se resume a comparar o preço da gasolina nos governos Lula e Bolsonaro.
Porém, mal se toca na questão que entendo ser central nessa discussão: o consumo da gasolina é direito ou privilégio?
Toda a sociedade precisa financiar o transporte coletivo no Brasil
É consenso no meio político: de Lula a Dória, de Bolsonaro a Boulos, seja na mais neoliberal das visões, ou no capitalismo de massa tupiniquim, se defende o direito de cada um ter o seu carrinho na garagem.
Todo o espectro político, principalmente em ano eleitoral, não tem coragem de bater de frente com o sonho do carro próprio. Se trata porém, de uma ilusão, pois não funciona na nossa sociedade nem nas nossas cidades tanto no aspecto físico quanto ambiental e econômico.
O problema “automóvel” não começou ontem. Vem de longa data com uma cultura de consumo que se alastrou por décadas, principalmente desde a ditadura de 64, com o desenvolvimento da indústria automobilística nacional.
Analisando o buraco em que nos metemos dos anos 2000 pra cá, podemos começar pelo governo Lula, que ao enfrentar a crise de 2008, zerou o IPI sobre automóveis populares, permitindo que a classe baixa sonhasse em ser classe média gastando boa parte do seu salário num carro, e deixando de gastar com lazer, serviços, educação, e outros bens que movimentam bem mais a economia das cidades, dado que a maior parte do gasto com automóveis não fica na cidade, vai embora para as montadoras, os fabricantes de peças e suas matrizes.
E indústria automobilística emprega pouco comparado à riqueza que produz.
Dilma em seguida, enfrentando a crise e a sabotagem do Congresso, segurou o preço dos combustíveis, para controlar a inflação. Mas poderia ter feito isso só para o diesel que, afinal, transporta o que consumimos e os trabalhadores no transporte público.
Optou por segurar também o preço da gasolina, na estratégia de dar um mimo para a classe média para ajudar na sua popularidade.
Temer resolveu, sem privatizar, colocar uma gestão com mentalidade privatizada na Petrobrás. Deixou livre o preço dos combustíveis, seguindo o mercado internacional. Ele e Dilma erraram em sentidos opostos.
Arrecadação da Zona Azul poderá ser destinada para ampliar ciclovias e ciclofaixas no Recife
Precisamos de uma política pública de preço, com o governo definindo os preços de gasolina e diesel principalmente, considerando suas externalidades, controle de inflação, estímulo ao uso do automóvel ou de transporte público, etc.
Em 2018, Fernando Haddad tinha uma proposta interessante, a municipalização da CIDE combustíveis, para que se pudesse usar o arrecadado para financiar o transporte público nas cidades. Na prática, os donos de automóveis financiariam o transporte público de suas cidades.
Nada mais justo!
Isso geraria uma tendência ao equilíbrio, dado que cidades com elevado uso do automóvel teriam um fundo maior para financiar o transporte público, favorecendo o seu uso, e reduzindo em seguida o uso do automóvel.
O Governo Bolsonaro, com gestão econômica do Ministro Paulo Guedes, segue a mesma linha de Michel Temer quanto aos preços dos combustíveis: a Petrobrás é uma empresa, e como tal deve visar o lucro. Como resultado, seguidos aumentos de preços e recore de dividendos para acionistas da petrolífera em 2021. Pula pra 2022, guerra da Ucrânia, sanções à Rússia, preço do petróleo dispara. Segue a reclamação sobre o preço da gasolina.
Não podemos, entretanto, avaliar o preço da gasolina como quem avalia o preço do pão. Todas as grandes e médias cidades do Brasil estão abarrotadas de carros. Temos uns 20% da população nos centros urbanos se deslocando desta forma, imagina como seria o trânsito se todos se locomovessem de carro!?
O impacto ambiental é enorme - não se engane, o carro elétrico não resolve esse problema - e financeiramente é fora da realidade.
Então ter um carro, e consequentemente consumir gasolina, tá longe de ser um direito, é um privilégio.
Mas pior que isso, estamos falando de um privilégio que restringe os direitos de todos os outros 80% que se locomovem de outra forma. Em qualquer cidade grande do País, as ações das municipalidades para melhoria do transporte público e das condições de mobilidade ativa - a pé ou por bicicleta - são delimitadas financeira ou politicamente pelos usuários de automóveis e seus representantes na classe política.
O discurso é sempre o mesmo quando se pretende colocar uma faixa exclusiva de ônibus, uma ciclovia ou alargar uma calçada. Questiona-se se há espaço, ou se há dinheiro disponível. Quando se gasta milhões para colocar asfalto novo, como aconteceu no Recife no ano de 2021, a sensação é que a preocupação com o gasto público sumiu.
Prefeitos argumentam que o gasto com asfalto favorece também o transporte público, mas o que se vê são obras de asfaltamento realizadas para melhorar a circulação de automóveis, pois sabemos que a qualidade do asfalto está longe de ser o principal problema do ônibus. Estamos falando de uma das maiores rubricas da prefeitura, favorecendo a mobilidade da pequena parcela da população consumidora de gasolina. Para o transporte público, falta subsídio, falta espaço, falta prioridade.
Aos que defendem o direito do trabalhador de andar de carro, estão corretos, mas há um cilada aí. Não é colocando o trabalhador dentro de um carro que se resolve o problema. Se o carro sempre oprime os outros modais, colocar mais algumas pessoas no lado opressor e ineficiente do sistema de mobilidade só piora a situação pra quem continua fora do carro, que é e sempre será a maioria.
Todos têm o direito de ter automóvel, mas o poder público deve trabalhar para que seu direito de uso - circulação - e de posse - vagas públicas e privadas -, sejam cada vez mais difíceis de ser exercidos. Cada prefeitura, inclusive a do Recife, deveria medir o sucesso de suas políticas de mobilidade pela quantidade de automóveis nas ruas.
Se esse número aumenta ano a ano, a gestão municipal fracassou. O carro deve ser a última opção para a mobilidade, somente para quando não é possível usar outros modais. A classe média, enjaulada no automóvel - e consequentemente no engarrafamento -, deveria buscar outra solução para o problema gasolina, ou pelo menos encolher o "rabinho" entre as pernas, reconhecendo como o seu uso da cidade prejudica todos os outros que estão fora do automóvel.
Porque cada vez que colocamos o carro na rua, estamos pressionando o poder público a não fazer nada, ou muito pouco pelos outros modais.