Ser motorista de ônibus nunca foi tão difícil. Foi com essa frase que a reportagem do JC foi recebida por um motorista de ônibus com mais de 20 anos de profissão. Um condutor que já levou até "tapa na cara", como ele mesmo diz, embora tenha sido um apaixonado pelo que faz. Hoje, não parece ser mais.
"Nunca foi tão difícil ser motorista de ônibus. Hoje nós somos destratados, somos um 'nada'. As pessoas não nos enxergam, não nos respeitam mais. Já cheguei a levar um 'tapa na cara' de uma passageira que se achou no direito de me agredir. Se eu não tivesse sido rápido, teria provocado uma colisão com o veículo", desabafa Márcio Magno, 51 anos.
De fato, ser motorista de ônibus atualmente nunca foi tão difícil. Sabemos que a condução de coletivos nunca foi o melhor trabalho do mundo, mas está pior. Muito pior. Ou seja, o que já era ruim ficou pior.
A retirada dos cobradores dos coletivos e, no caso da Região Metropolitana do Recife, o avanço da prática do chamado 'surf nos ônibus' e as invasões dos veículos por pessoas que não pagam a passagem - muitas vezes por pura diversão - dificultaram ainda mais a rotina dos motoristas.
Eles reclamam da invisibilidade diante da sociedade.
É sobre isso que esta reportagem trata. Sobre o árduo e pesado trabalho dos motoristas de ônibus. Sempre culpados de tudo - como eles alegam e bem defende a passageira Vasti Faustino, auxiliar administrativa.
"Eles são sempre culpados de tudo, sem ser. É impressionante. É uma profissão muito exposta. Estão ali fazendo dupla função, cumprindo horários extensos, e sem serem vistos como seres humanos. As pessoas raramente os cumprimentam, agradecem ou dão sequer bom dia. Qualquer profissional precisa ser tratado com cordialidade", diz.
"E a impressão, de fato, é de que está tudo muito pior com a dupla função. É muita responsabilidade para os motoristas. Mesmo que a maioria dos passageiros usem o cartão eletrônico para pagar a passagem, ainda tem muita gente usando o dinheiro. Lidam com o trânsito, com o barulho e, agora, com as pessoas que praticam o surf e pulam as catracas. De fato, é uma profissão que deve deixá-los muito doentes fisica e psicologicamente", afirma.
A Região Metropolitana do Recife tem, atualmente, dez mil rodoviários. Os motoristas representam 30% desse total. O restante são profissionais que atuam nos setores de manutenção e administrativo.
Cobradores não existem mais. O sistema começou um processo de retirada dos profissionais ainda em 2015, mas por ter sido feito pelos operadores e o Grande Recife Consórcio de Transporte Metropolitano (CTM) sem o planejamento devido, pegando a população de surpresa, chegou a ser suspenso pessoalmente pelo então governador de Pernambuco Paulo Câmara (PSB).
Depois, foi retomado gradativamente e com o critério de manter os profissionais em algumas linhas que tinham mais de 5% da demanda pagante em dinheiro. Só que, com a pandemia de covid-19, em junho de 2020 o governo do Estado liberou a retirada de todos os cobradores e institucionalizou a dupla função para a categoria.
Embora em número menor, são os motoristas que estão nas ruas e, por consequência, são eles que sentem o peso que é operar o transporte público diariamente - só quem utiliza vai entender. Nem mesmo os planejadores que não são usuários sabem o que é dirigir, passar troco, operar o embarque e o desembarque de passageiros e, ainda, ter atenção no trânsito, onde o ônibus está quase sempre lutando por prioridade.
É, de fato, difícil. Muito difícil.
Os motoristas de ônibus estão entre o desemprego e a perda de renda da população - vale lembrar que o Grande Recife é a região metropolitana com o maior percentual de pessoas em extrema pobreza de todo o Brasil, segundo o Boletim Desigualdade nas Metrópoles - e uma passagem cara, principalmente para essas pessoas que não podem pagar.
Além disso, ainda existem as regras do sistema de transporte, que exige o pagamento da tarifa e o bom uso dos ônibus - câmeras os monitoram durante toda a operação para garantir o cumprimento.
Não tem sido raro nos últimos meses vermos casos de agressões a rodoviários que tentam impedir a invasão dos coletivos por pessoas que não pagam a passagem. Com as agressões, inclusive, sendo filmadas e divulgadas em redes sociais.
Um caso que teve muita repercussão aconteceu em dezembro de 2022. O motorista entrou em luta corporal com passageiros para impedir que fizessem a viagem sem pagar. No caso do 'surf nos ônibus', também tem sido comum casos de jovens mortos ou mutilados praticando o ato.
O mais recente, por exemplo, aconteceu no dia 7 de março. Um jovem de 20 anos morreu depois de se chocar contra um poste de iluminação, entre os bairros da Cohab, no Recife, e Dois Carneiros, em Jaboatão dos Guararapes. Ele estaria escalando o ônibus para chegar ao teto do coletivo e praticar o "surf".
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"Está sufocante. A orientação das empresas é parar o veículo, mas é difícil porque você é ameaçado por passageiros, pelos invasores e ainda por aqueles que querem viajar pendurados. A gente fica exposto, sozinho no ônibus para fazer tudo. Para cobrar, dirigir, atender a um cadeirante e, ainda, ter atenção nas portas de embarque e desembarque", desabafa outro motorista, Cristiano Alves, 46 anos, que foi agredido a socos por passageiros que entraram no coletivo sem pagar.
"Fora o trânsito, que torna quase impossível cumprir os horários estabelecidos. Isso gera um stress tremendo. Chegamos no fim de um dia de trabalho com um esgotamento físico e mental", reforça.
E isso tudo para ganhar menos de R$ 3 mil por mês.
A invasão do sistema por pessoas sem pagar a passagem aumentou demais no transporte público por ônibus do Grande Recife, principalmente depois da pandemia de covid-19. Dados do próprio governo de Pernambuco mostram que a evasão de receita já representa entre 15% e 20% da receita do sistema.
Para se ter ideia do impacto, esse percentual significa R$ 20 milhões por mês a menos de passagens pagas por passageiros que, mesmo assim, estão sendo transportados. E, de acordo com o governo do Estado, é um custo que está sendo absorvido pelos passageiros que pagam a tarifa.
O motorista Márcio Magno do Rego, 51 anos e há 22 anos no transporte público, até “tapa na cara” já levou enquanto trabalhava. Criado desde menino no setor, tem orgulho de dizer que a mãe foi a profissional de registro 022 da extinta empresa de ônibus São Paulo, uma das mais antigas do Grande Recife.
Mas hoje em dia, diante da ampliação das dificuldades enfrentadas pelos motoristas de ônibus, é só lamento. Reclama que falta apoio à categoria, principalmente do passageiro, que nunca sai em defesa quando a situação aperta para os profissionais na rotina do transporte público - que só quem conhece sabe como é árdua.
Na entrevista abaixo, Márcio Magno conta os apertos que já passou e as razões para estar tão desiludido com a profissão. Confira:
JC - A primeira frase que você nos disse foi: “Nunca foi tão difícil ser motorista de ônibus”. Por quê?
MÁRCIO - De fato, nunca foi tão difícil ser motorista de ônibus. Hoje nós somos destratados, somos um ‘nada’. As pessoas não nos enxergam, não nos respeitam mais. Já cheguei a levar um ‘tapa na cara’ de uma passageira que se achou no direito de me agredir. Se eu não tivesse sido rápido, teria provocado uma colisão com o veículo. Fui pego de surpresa.
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JC - Você também relatou que já passou muitos, muitos ‘apertos’ nesses 22 anos de profissão. Relata alguns deles
MÁRCIO - Já fui assaltado diversas vezes e a prática já tinha virado costume. Até que um dia eu nasci de novo. Era o dia 11 de agosto de 2016, data que nunca vou esquecer. Eu rodava na linha Barro/Cajueiro Seco, da Empresa Vera Cruz, e fui assaltado. Eram dois homens.
O que estava na parte de trás do ônibus mandou abrir a porta para eles descerem, enquanto o outro, ao meu lado, apontava a arma para mim. Eu pedi calma e expliquei que o veículo só abria a porta quando parava totalmente, que era um sistema de segurança (conhecido como anjo da guarda).
Foi quando o de trás mandou atirar em mim: atira nele, atira nele, disse. O ladrão apontou a arma para o meu ouvido e disparou, mas pela graça de Deus o projétil não saiu. eu quase desmaiei, sai de mim, nem sabia mais o que estava fazendo. Consegui abrir a porta para eles e quando o que atirou em mim desceu a bala saiu. Ali eu nasci de novo.
JC - E o que, na sua opinião, tem contribuído para tornar a profissão de motorista ainda mais difícil?
MÁRCIO - Acho que a situação piorou muito por causa da dificuldade financeira da população. Muita gente sem emprego, o que aumenta o vandalismo. A situação está fora de controle. As pessoas acham que é normal andar no ônibus sem pagar porque não tem o dinheiro da passagem.
Acham que a tarifa é cara e, como não têm o dinheiro, pulam a catraca e acham que têm direito de fazer isso. Nem nos respeitam. Pulam na nossa frente mesmo, sem qualquer constrangimento. E se dissermos qualquer coisa somos xingados, ofendidos e até agredidos fisicamente.
JC - Você acredita que a retirada dos cobradores dos ônibus e o aumento da prática do ‘surf nos ônibus’ pioraram a situação? Embora a presença do cobrador nos veículos não seja mais tão necessária devido ao pagamento por cartão eletrônico?
MÁRCIO - A retirada do cobrador dificultou muito a nossa vida porque um cordão de duas dobras é mais difícil de torar… Sabíamos que isso iria acontecer porque o uso do cartão eletrônico reduziu muito o pagamento da passagem em dinheiro.
E que as empresas não teriam como sustentar o custo do cobrador, que ficaria nos ônibus apenas para dar bom dia, boa tarde e boa noite. Mas na minha opinião a retirada foi precoce porque muitas linhas ainda têm demanda de dinheiro e o motorista ficou sozinho para cuidar de tudo.
Já o surf no ônibus eu vejo como resultado da impunidade. A pessoa se sente no direito de fazer aquilo por pura diversão. Mesmo quando a gente abre a porta para que viaje dentro, para evitar um acidente, ele diz que não quer, que quer ir pendurado. Ou seja, por diversão. Para ter a sensação de perigo.
O que nos causa revolta é que, quando acontece algo, nós temos que responder à Justiça sem ter culpa nenhuma.
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JC - O senhor reclamou da falta de humanidade e de apoio, principalmente dos passageiros, ao motorista de ônibus nos tempos atuais. É isso mesmo?
MÁRCIO - É sim. Parece que as pessoas não nos enxergam mais. Falta humanidade, apoio, principalmente dos passageiros. Nós somos culpados de tudo e por tudo. E estamos sozinhos conduzindo veículos grandes, pesados, difíceis de dirigir. E sozinhos para tudo.
Você se sente muito sozinho, sem apoio. E olha que eu sou praticamente nascido e criado no transporte público. Minha mãe foi a funcionária de número 022 da Empresa São Paulo.
A bagunça que está acontecendo no transporte público do Grande Recife é uma questão de segurança pública. As pessoas acham que devem fazer aquilo e não tem quem pare. Virou uma bagunça mesmo e só a polícia vai dar jeito.
E de quem a gente deveria receber atenção, que é a segurança pública, não recebemos. Muitas vezes passei por viaturas da polícia com pessoas penduradas no ônibus, até fazendo surf, e ninguém foi parado. A viatura passa e vai embora.
JC - E o passageiro, que deveria ajudar, não faz nada, correto?
MÁRCIO - A relação com o passageiro é difícil, muito difícil. Ele só quer chegar ao destino. Não quer saber se a gente parou o ônibus porque o passageiro está pendurado e pode cair, provocando uma morte ou ferimento, por exemplo. Ele só quer saber de chegar.
Muitas vezes, quando a gente para o ônibus e diz que não vai seguir viagem, eles ficam contra a gente. Não entendem a nossa posição. Não aceitam que aquele ato de parar a viagem é uma forma de reivindicarmos um direito. Ao contrário, se revoltam contra a gente, alegando que precisam chegar ao destino, ao médico, ao compromisso. É muito, muito difícil.
Cristiano Alves, 46 anos, está há dez no transporte público, sendo quatro como cobrador e seis como motorista. Desde que entrou no setor, sonhava em conduzir ônibus. Atualmente, depois das dificuldades enfrentadas, confessa que perdeu o encanto.
E não é para menos. Além do motor quente e dianteiro dos coletivos, ao lado do seu corpo o dia inteiro, o trânsito que prolonga o percurso e dificulta o cumprimento de horários, há a violência.
O profissional foi agredido a socos por dois passageiros que invadiram o ônibus sem pagar a passagem. Pego de surpresa e sozinho no veículo, por pouco não provocou uma colisão com o ônibus.
Na entrevista abaixo, ele relata as razões da agressão e a tristeza de seguir na profissão de motorista de ônibus.
JC - Como e por que você foi agredido fisicamente por passageiros?
CRISTIANO - Tudo começou no sábado antes das Eleições 2022. Eu parei o coletivo para desembarque no TI Xambá (em Olinda) e não vi que dois passageiros subiram pela porta de trás, o que é proibido. Segui para a área de embarque e, nesse momento, um dos homens começou a me ameaçar. Eu decidi não seguir viagem e tive que fazer um registro (BO) para a empresa, explicando as ameaças e a razão de não seguir com a viagem.
Até aí tudo bem. Quando foi na terça-feira, os mesmos passageiros me esperaram no terminal de Águas Compridas, em Olinda - terminal da linha que eu operava -, e me agrediram de surpresa. Eu estava com o carro parado e tinha acabado de abrir a porta para uma passageira entrar, quando eles subiram e começaram a me dar socos.
Por pouco não aconteceu uma colisão com o ônibus, já que o freio de mão não estava acionado. Se eu tivesse desmaiado, por exemplo, o coletivo poderia ter avançado sobre as pessoas ou sobre outros veículos.
Os dois ainda ficaram pendurados no coletivo em parte do percurso até o terminal. Cheguei a abrir a porta para eles entrarem, mas não quiseram. Foram pendurados até o terminal. Ainda tirei o carro de marcha, com cuidado na vida dos dois, para ser espancado depois. Levei vários socos até conseguir me proteger. Tudo isso sozinho, completamente sozinho.
JC - Tem sido difícil ser motorista de ônibus atualmente?
CRISTIANO - Demais. E o surf é um dos principais problemas atualmente. Tem provocado tragédias. Está sufocante. A orientação das empresas é parar o veículo, mas é difícil porque você é ameaçado por passageiros, pelos invasores e ainda por aqueles que querem viajar pendurados. A gente fica exposto, sozinho no ônibus para fazer tudo. Para cobrar, dirigir, atender a um cadeirante e, ainda, ter atenção nas portas de embarque e desembarque. Fora o trânsito, que torna quase impossível cumprir os horários estabelecidos. Isso gera um stress tremendo. Chegamos no fim de um dia de trabalho com um esgotamento físico e mental.